A NECESSÁRIA TIPICIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONATÓRIO
Ao saudoso jurista Giuliani Fonrouge
No âmbito da Administração Pública, o exercício de cargo público está jungido a um conjunto de deveres, articulados à concretização dos mais variados interesses públicos. A garantia da estabilidade, ao contrário de certas imunidades deferidas, é um garantia para que o exercício do cargo não seja marcado por temores reverenciais nem por outros vícios coloniais herdados há muito tempo. Nesse contexto, em que a estabilidade é uma garantia, o poder punitivo precisa ser cingido de limites e desenvolvido no contraditório e, especialmente, na ampla possibilidade do direito de prova. Isso porque uma das formas de violar o contraditório é dificultar ou restringir o amplo direito à prova.
Alguns publicistas, talvez por buscarem mais imitar do que pensar o direito no contexto próprio, fazem da dogmática jurídica caudatária de decisões que, muitas vezes, corroem a garantia própria ao direito. Sendo um dos papéis da dogmática a formalização dos dados jurídicos para que a interpretação do direito seja realizada nos quadrantes do sentido literal possível, cumpre-lhe o papel de exercer o uso público da razão para, inclusive, melhorar a aplicação do direito.
O direito, na medida em que formaliza a atuação estatal, opera pela tipificação da conduta. O pensar tipificador, inerente ao direito, tem que ver com a necessidade de, ao criar hipóteses abstratas, selecionar os predicados que, enfeixados, constituem o cerne do esquema abstrato prévio, o qual figurará como vetor de interpretação. Por isso, não se deve confundir a hipótese tipificadora com o fato inserido no mundo. São coisas diversas. Uma coisa é o fato inserto na hipótese enquanto fruto do procedimento abstrato-concreto seletivo do legislador; outra coisa é o fato acontecido nos eixos do espaço-tempo que, pela incidência da hipótese, é juridicizado.
A questão metodológica central do direito é o modo como os fatos serão classificados pela interpretação. Desde A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, temos salientado que a interpretação, se não aderir aos predicados constantes da hipótese, pode alterar o âmbito de validade das normas, atingindo situações alheias ao direito ou alijando outras claramente abarcadas pelo esquema normativo. E, de forma velada, sob pretexto de aplicar os dados estabelecidos pelo legislador, mediante uma sombria promoção ontológica que a produção dos sentidos permite, classificar erroneamente situações e produzir tragédias e absurdidades.
Em O conceito de direito, Herbert Hart entende o direito como jogo. O direito, consoante afirmamos em As Antinomias do Direito na Modernidade Periférica, é um jogo de linguagem em que cada lance precisa ser interno às regras do jogo. Isso porque o jogo sobrepuja a subjetividade dos jogadores. O jogo é transindividual e objetivo. Todo partícipe que faz um lance fora das balizas pré-estabelecidas corrói o jogo de linguagem e instaura, de forma ilegítima, a partir de sua própria subjetividade um novo jogo, mas sem qualquer amparo na forma de vida comunitária que instaurou o jogo. Não se cria do nada uma forma de vida, uma prática social.
Para corroer o jogo, verifica-se uma cláusula não escrita de, quando o jogo não favorece a um dos partícipes, criar um lance que, na aparência pertence ao jogo de linguagem, mas constitui sua subversão.
Dentro dessa ampla visão, o poder disciplinar deve ser revestido de legalidade estrita e tipicidade em todos os seus desdobramentos. Portanto, a realização de sindicância ou de procedimento administrativo depende da existência prévia de juízo de tipicidade seguro e da existência de provas inicias lícitas. Há que distinguir provas iniciais da mal chamada prova indiciária. Indício não é meio de prova. O indício na medida em que está desarticulado de um conjunto que lhe confira um significado seguro flutua dando margem às mais variadas conjecturas ilógicas.
A sindicância e o procedimento administrativo não podem constituir forma sutil e ilegal de devassa na vida do servidor nem ser uma incógnita desprovida de descrição fática consistente que inviabiliza o direito de ampla defesa. A indecidibilidade na descrição fática é forma de abuso de poder inadmissível numa democracia e deve ser objeto de rechaço veemente.
São corolários dessa mirada: 1) a sindicância deve se arrimar em fato certo e concreto, 2) não se admite indiciamento, seja em sindicância seja em procedimento administrativo, sem a descrição de uma conduta típica que constitua infração administrativa e sem a descrição fática que permita a ampla defesa; 3) não se instaura sindicância e procedimento administrativo com base em provas ilícitas e 4) todas manifestações estatais que reflitam na esfera jurídica do jurisdicionado deve-se articular no contraditório que, para além do binômio informação-reação, funda-se no direito amplo de provas. O cerne do contraditório, conforme temos tido de forma inaugural, é o direito de prova.
No direito administrativo disciplinar, exige-se que a acusação seja certa, objetiva, circunstanciada e o fato imputado ao servidor público subsumido em um tipo legalmente previsto, decorrendo tais exigências dos princípios da legalidade, da tipicidade e da segurança jurídica
Então, se a Administração Pública atua vulnerando os critérios adunados incorre em crime de abuso de poder a ser debelado por todas as vias cabíveis, inclusive a resistência legítima.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
DOS LIMITES E DAS POSSIBILIDADES DA CUSTÓDIA CAUTELAR
“É dever da cidadania recusar o cumprimento de ordem judicial manifestamente ilegal”
É preciso suplantar o estereótipo, reforçado pela dogmática jurídica acrítica, de que o processo cautelar tem por objeto o resultado útil de outro processo. Na verdade, o objeto do processo cautelar circunscreve-se à tutela de uma situação cautelanda, a qual tem realidade em si, objetivamente considerada, enquanto direito, e não em relação ao resultado de outro processo.
No caso do processo penal, avulta de importância a necessidade de fazer esse giro. Na medida em que o foco se dirige à situação cautelanda, encontram-se critérios mais objetivos para assegurar que a custódia cautelar possa acontecer nos marcos rígidos da democracia. É incompatível com a democracia a custódia cautelar erigida como forma de antecipação de pena.
A cominação concreta de uma pena exige um processo penal arrimado no contraditório com amplas possibilidades probatórias culminando no título executivo adensado na sentença penal transitada em julgado. Por isso, é preciso cingir de garantias indeclináveis a custódia cautelar para que a legalidade e a tipicidade sejam respeitadas em todos as lindes do direito. Afirme-se de forma clara: a custódia cautelar não se confunde com a forma insidiosa e abusiva de antecipação de pena.
Não é apenas no direito penal material que a tipicidade se expressa. Na medida em que o processo constitui um conjunto formalizado previamente, as medidas cautelares devem se revestir de tipicidade. Não existe poder geral de cautela no processo penal. Ou há medidas típicas ou não há.
O giro proposto aqui, de forma absolutamente original, exige novos requisitos para a custódia cautelar, quais sejam:
- juízo de tipicidade seguro e consistente de que o fato, atual e concreto, se enquadra nos predicados constantes do tipo penal. Não há falar em fumaça de cometimento de delito. Há de haver um juízo de tipicidade seguro de que uma conduta punível aconteceu. Nesse sentido, a decisão precisa detalhar de forma clara e consistente que se estriba num juízo de tipicidade consistente. Inúmeras consequências decorrem dessa premissa: a conduta deve ser atual e concreta. O direito sempre se reporta a uma dada situação.
Anota Lourival Vilanona:
“(…) o domínio das normas é linguagem não formalizada, não algoritmizada, com referências semânticas a situações objetivas na realidade social da conduta ( As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo)
Assim, ilações despidas do mínimo de substrato fático não têm idoneidade para justificar a privação do maior dos direitos: a liberdade. Não podemos incorrer numa prática escatológica e cheia de previsões funestas.
2) como no processo a cautelaridade se desdobra em várias possibilidades, desde a prisão até outras medidas, há que verificar a proporcionalidade, no sentido da lógica do razoável de Recasens Siches e de Aristóteles, da prisão preventiva. Há proporcionalidade, quando, em cotejo com as outras medidas cautelares disponíveis, a única forma viável de acautelar a situação seja a prisão. Havendo outra medida menos gravosa aos direitos fundamentais e idônea a produzir os efeitos preordenados de tutela da situação cautelanda, a prisão preventiva revela-se abusiva e configura o crime de abuso de poder.
As legislações hodiernas, com pequenas variações, tem estipulado a prisão preventiva para os casos de lesão: 1) à ordem pública, 2) à ordem econômica, 3) à conveniência da instrução criminal e 4) assegurar a aplicação da lei penal.
No que concerne à ordem pública, a dogmática vinculada à filosofia da linguagem ordinária- Hart- tem enfatizado que a linguagem jurídica haure seus atributos na linguagem natural, a saber: vagueza e ambigüidade. Um termo é vago quando não é possível precisar seus limites precisos (extensão indefinida)? É ambíguo um termo que apresenta diversos sentidos em contexto diferentes.
As observações de Hayakawa coincidem com as declarações acima ao declinar que os termos possuem um significado extensional (aquilo que ele indica, a classe que o termo denota) e um significado intensional (aquilo que nos é sugerido (conotado) na nossa cabeça).
O termo ordem pública, fora dos eixos comunitários da linguagem, constitui um exemplo de termo que ostenta um significado intensional, apresentando textura aberta e indefinida de forma que qualquer situação, mesmo fora do alcance da normatividade, pode ser facilmente enquadrada nos seus lindes.
Engendram-se tormentosas dificuldades para definir tais termos. Por isso, os grandes pesquisadores da interpretação/aplicação do direito (salientamos o nome de Luis Alberto Warat) revelam que urge estabelecer, para dirimir o problema, critérios de decidibilidade, isto é, critérios semiológicos que irão orientar a definição mais adequada possível. Assim, a ordem pública só pode ser invocada para proteger um valor albergado na Constituição e não para obliterar/ofuscar as garantias que a informa.
Pensamos que a semiologia jurídica de Luis Alberto Warat, ainda herdeira das vacilações de Herbert Hart, apesar das inestimáveis contribuições, apresenta um sentido mais iconoclasta do que perscrutador da necessidade de limitar o poder estatal.
Analisando a aplicação do direito, sob o signo ordem pública agasalham-se os mais variados significados: 1) salvaguardar a credibilidade das instituições; 2) o modo de execução da conduta punível; 3) a pena cominada em abstrato atribuída ao fato punível; 4) possibilidade de reiteração criminosa.
Num Estado democrático, o ser humano na concepção de Kant não pode ser reduzido à condição de res (coisa), emergindo como fim em si mesmo, como centro de valor que fundamenta e irradia a ordem jurídica. Vedado está o uso promocional do ser humano, não se justificando a constrição da liberdade para garantir a credibilidade das instituições.
Analisar, concretamente, o modo de execução para aferir a culpabilidade já constitui exame de mérito e, portanto, forma oblíqua de antecipação de penal.
Quanto a considerar a pena abstratamente cominada, trata-se de questão de política criminal, referente ao momento nomogénetico, que expunge qualquer possibilidade de aferição em momento prévio à avaliação judicial jungida ao contraditório. É um critério avaliativo inerente à atividade legislativa e não poder servir de vetor para a constrição da liberdade em caso de custódia cautelar.
Na verdade, as instituições devem desenvolver os processos penais de maneira a seguir os procedimentos formais estabelecidos previamente e, somente, após à aferição em contraditório, punir. Usar uma deficiência de gestão da justiça para promover, à custa das liberdades constitucionais, indevidamente, a imagem da justiça constitui perversão da democracia a ser combatida. A credibilidade das instituições depende da produção adequada dos sentidos jurídicos possíveis. Não se defende a impunidade, mas se critica uma forma enviesada de atuação estatal que, na ausência de processos articulados no contraditório e na ampla possibilidade probatória, no marco de uma temporalidade razoável, busca produzir efeitos simbólicos de legitimidade mediante a punição desgarrada de bitolas legais.
Portanto, somente no caso em que há possibilidade concreta de reiteração criminosa, concretamente considerada, é que se justificaria a custódia cautelar sob o signo da ordem pública. Todas as demais hipóteses são casos evidentes de apropriação privada da linguagem, isto é, usurpação do sentido legiferante do termo.
A ordem econômica, de acordo com a hermenêutica jurídica analógica, constitui o conjunto de normas que regulam a produção e a circulação de bens e serviços bem como o regramento das competências e da competição. Conforme salientou a criminologia crítica, as classes dominantes delinquem; não obstante, em razão da suspensão colonial do direito, estão protegidas sob a forma de acordos implícitos.
O ataque à ordem econômica produz graves males sociais e deve ser objeto de consideração numa ordem democrática em que a igualdade perante a lei é regra motriz.
Não há exemplo, na jurisprudência atual, de prisão preventiva no caso de lesão à ordem econômica, demonstrando-se o caráter seletivo do processo penal que, mediante as agências estatais, convertem apenas parcela da população em criminosos. É ingênua a visão de que criminoso é aquele que viola a lei penal. A experiência mostra que criminoso é aquele que as agências estatais produzem como criminosos mesmos nos casos de vulneração das garantias constitucionais.
Quanto á conveniência da instrução criminal, volta-se à proteção da produção adequada das provas e da lisura do próprio processo. Nesse contexto, cabe à custódia cautelar quando há possibilidade de fraude processual. Inclusive, a legislação hodierna ampliou o tipo de fraude processual para abarcar a orquestração maquinada para operar a normatização apócrifa dos fatos.
No que tange a assegurar da aplicação da lei penal, a doutrina, sob essa hipótese, considera a possibilidade de risco de fuga. Temos que, na inteligência sistemática das medidas cautelares, o risco de fuga pode ser neutralizado por outras medidas que não a prisão e, apenas e tão-somente, após o descumprimento dessas medidas é que a prisão preventiva torna-se possível. Nesse contexto, cabe a custódia cautelar quando se violam, de forma habitual, as medidas cautelares voltadas à proteção do comparecimento à justiça.
Por isso, dentro da lógica do razoável de Recasens Siches, havendo medidas outras que podem acautelar a situação de forma a ponderar os valores em jogo, salvaguardando-se o interesse geral sem o sacrifício dos direitos fundamentais do indivíduo, a prisão preventiva configura verdadeiro crime de abuso de poder a ser debelado imediatamente pelas vias adequadas.
A prisão preventiva não pode se converter, como sói ocorre na América Latina, instrumento de persecução penal dos pobres e forma de controle das populações. É hora de defender a legalidade e a tipicidade processual para evitar que o direito penal seja instrumento de encarceramento dos pobres e da neutralização do potencial político de uma nação.
Deve-se lembrar sempre, na lição fantástica de Carlos Cossio, que o fundamento ontológico de todo ordenamento é a liberdade.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
CARTA À JUVENTUDE BRASILEIRA
“Quando tu verás na tua terra um Dostoiévski, um George Eliot, um Tolstoi- gigantes destes, em que a força de visão, o ilimitado da criação, não cedem à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dor daquelas gentes donde às vezes não vieram – quando?”(Lima Barreto)
Gramsci- o filósofo por excelência, no enfrentamento com o poder instituído- era uma pensador da totalidade cuja obra ainda está por revelar, dizia que é importante perguntar o que motiva uma formação social: se são interesses alheios ou se há uma motivação genuinamente nacional, aberta às diferenças.
No caso do Brasil, há pensamento nacional, mas falta um bloco de poder com pujança para articular as classes dominadas para a tomada do poder.
Hoje, temos uma cena deprimente em que poderes autorreferentes se deparam com um grande vazio. Não representam mais o Brasil das novas gerações: representam os interesses dos imperialismos e, portanto, atuam contra o próprio povo. Não têm força nem soberania para defender o povo brasileiro e entram numa das mais graves crises de legitimidade. E é irremediável no marco institucional vigente.
Há dois Brasil em conflito: um, colonial, violento e totalitário, cujas raízes remontam a 1492; outro, profundo, consistente e capaz de articular soluções nacionais.
A juventude brasileira não deve alimentar ilusões: o Brasil colonial só se mantém se reprimir o Brasil que vem no encalço de Lima Barreto, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond, Castro Alves, Alberto Guerreiro Ramos, João Gilberto, Jamelão, Zé Keti. É um Brasil inteirado das questões e engajado na constituição da solidariedade. E , por isso, vai na contramão de uma extensão cada vez mais abusiva do modal deôntico proibido expresso, sobremodo, na delação premiada que agora atinge níveis capilares e as instituições públicas. É um mecanismo claro para coarctar as possibilidades críticas nas novas gerações. Não nos enganemos, a formação social brasileira atual é totalitária, invía à crítica e repressora de qualquer questionamento problematizador das engrenagens coloniais de poder. Já há elementos robustos de que o Estado Brasileiro trata intelectuais orgânicos como inimigo.
Nessa disjunção profunda, cabe à juventude brasileira não fazer qualquer concessão às formas normalizadas da colonialidade do poder, mas perserverar na afirmação incondicional do novo que brota gradativamente. A filosofia mundial já resolveu, em linhas gerais, a grave questão da pragmática econômica, cabe agora conquistar a autonomia política para, vencendo os jogos de soma zero- Alain Badiou- empreender as reformas econômicas produtoras da igualdade.
Sem ilusões e com pensamento estratégico, podemos alcançar a nossa auto-determinação nos moldes da libertação!
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
A FARSA DO PLANO REAL
A Ruy Barbosa Oliveira, cuja vocação pública faz enorme falta
Os subscritores do plano real escreveram que: 1) a vinculação dos preços de mercadorias e serviços ao dólar teria efeito deflacionário; se não fosse trágico pelos efeitos deletérios que provoca nos interesses nacionais, seria risível a assertiva; 2) a diminuição e a desburocratização de impostos geraria concorrência entre as mercadorias e serviços importados em cotejo com os nacionais, tendo como fundo compartido o dólar, e, portanto, a diminuição dos preços de mercadorias e de serviços. Na verdade, desata a destruição da economia nacional e prejuízos incalculáveis aos setores exportadores e às trocas comerciais, ante a realidade cambiante da dinâmica internacional.
Na verdade, o plano real é uma farsa; uma forma ardil e artificiosa de, por meio de linha de menor resistência, combater a inflação à custa da economia popular e do achatamento, sutil e indisfarçável, do poder aquisitivo. É uma farsa para submeter o Brasil aos efeitos dominadores do dólar. O real não é existe. A moeda nacional, se seguirmos rigorosamente o marxismo ortodoxo, é o dólar.
Todos os governos que se alinharam ao plano real- o pior plano econômico da história do Brasil- são antinacionalistas e antipopulares. Na verdade, não temos burguesia nacional. Para citar Gunder Frank, na modernidade periférica, temos uma lumpemburguesia que, de forma explícita, sem qualquer pudor, subordina a economia aos interesses imperialistas dos bancos internacionais sob o domínio dos EUA.
O tal do plano real indexou a economia nacional de forma que, qualquer flutuação fronteiriça, provoca o aumento dos preços dos produtos de consumo básico, a desaceleração da atividade produtiva e prejuízos inestimáveis ao setor exportador, afetando, sobremaneira, a balança comercial, tornando a discussão sobre superávit sibilinas afirmações desprovidas de critério científico. Industrialização, economia nacional-popular e plano real são antíteses, insolúveis. Não deixa de ser irônico que o sintoma venha a público apresentar-se como solução. O plano real- que alguns se jactam de ter criado- é um plano inflacionário cujo efeito principal é a devastação da economia nacional e das relações comerciais da nação na medida em que se arrima num cenário mundial monolítico.
Na aurora da República, Rui Barbosa- jurista genial, mas de retórica empolada, criou o encilhamento, um plano econômico profundo de cunho nacional que foi boicotado pelo Império Britânico. Ah, eram tempos em que, mesmo na premência do mais cruel colonialismo, havia inteligências. O Brasil sempre está por nascer.
O plano real, na encruzilhada em que estamos metidos, cria, imediatamente, duas disjunções: a) a existente entre os setores exportadores e a aristocracia financeira, e b) a existente entre a submissão ao dólar e a necessidade imperiosa de trocas mercantis mais equilibradas de maneira que, nas oscilações do capitalismo mundial integrado, estamos a atingir a borda da falência.
A incompetência das classes dominantes, representadas por todo o espectro político, no Brasil, não cabe mais no orçamento. Uma nação cuja institucionalidade não é porosa à contradição e à crítica emperra de forma irremediável.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado, Professor da UNEB.
PANDEMIA, O FIM E O COMEÇO DA POLÍTICA
Ao filósofo Bernard Bourgeois, o mais hegeliano de todos
Toda definição correta, desde Aristóteles, deve estabelecer o gênero próximo e a diferença específica. A endemia e a pandemia abrangem situações de propagação de doenças; na endemia, limita-se a uma região e os números de casos se mantêm em proporção aritmética de forma regularmente controlável; a pandemia estende-se a várias regiões e a doença se propaga em proporção geometria, podendo tornar-se incontrolável.
No contexto de formações coloniais, marcado pela colonialidade do poder, a pandemia desata um conjunto de questões problemáticas, sobretudo, no que se refere ao problema central da política.
Jacques Rancière articula o político ao desentendimento, isto é, à luta de classes como condição do político? Mas para definir o fenômeno devemos nos limitar à condição? Não seria necessário engajar o problema numa dimensão mais ampla?
Chantal Mouffe, ao vincar a distinção entre o político e a política, define política como antagonismo constitutivo da sociedade[1]. Mesmo desenvolvendo o conceito em relação ao liberalismo, falha, a nosso ver, grave, vejamos como aborda a questão:
“(…) entendo por ‘o político’ a dimensão de antagonismo que considero constitutiva das sociedades humanas, enquanto entendo por ‘política’ o conjunto da prática e instituições por meio das quais uma ordem é criada, organizada a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo política’’[2]
É um grande equívoco definir a política em referência à constituição de uma ordem. Conforme afirma Badiou, numa tradição que remonta a Maquiavel, passando por Rousseau a Althusser, a política existe para evitar o enfrentamento de um vazio que obseda as formações sociais. A política é menos o lugar da unidade do que a luta para preencher um vazio.
Laclau invoca o X incognoscível para indicar o vazio. Não há nada de incognoscível. O vazio é fruto do movimento dinâmico das lutas de classes, nas intersecções econômicas e políticas.
Outro equívoco grave de Mouffe é associar a concepção deliberativa a um resgate da moralidade no âmbito político[3]. É nada conhecer sobre Aristóteles.
Pensamos que a grave questão foi bem colocada por Engels, apesar de não ter levado à consumação plena o princípio dialético ‘’o um se divide em dois’’:
“O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é ‘a realidade da ideia ética’, nem ‘a imagem e a realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes produto da sociedade, quando essa chega a um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, essas classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-la dentro de limites da ‘ordem’. Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, o Estado.[4]”
Fazendo uma ligeira variação, podemos definir o Estado como instância da totalidade social-histórico, isto é, como lugar de mediação que, em razão da correlação de forças, pode ser um lugar de repressão ou de expressão da vontade geral. Nesse sentido, é crucial resgatar o conceito de deliberação. Não se delibera sobre o impossível nem sobre o necessário, já articulávamos em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social.
A deliberação se insere num contexto de escolha da própria escolha. Afirma Aristóteles que ‘’do justo e do injusto leva à aporia’’, isto é, a contingência não enquanto caos, mas como abertura conjuntural em que há possibilidade de escolher para além das engrenagens internas de um sistema reprodutor de sua mesma forma sob variações enganadoras.
Em razão das contradições do capitalismo, as formações sociais, desenvolvidas ou não, no contexto de pandemia, já não deliberam mais. Por exemplo, os discursos do Premier chinês Li Keqiang sobre taxas é uma prova cabal de que não se delibera mais.
Conforme disse Marx, o capital é o limite do capital. Em que sentido limite? No sentido platônico do conceito. O peso da dívida pública, as contradições no âmbito das classes dominantes, a dispersão popular, em contexto de pandemia, engendram um acúmulo de problemas e, como corolário, a incapacidade de deliberar, descambando-se para proscênio tétrico e sombrio de massacres de populações.
O livro Por Uma Renovação Marxista da Teoria da Dependência, demonstrando a dívida pública como mecanismo de reprodução da dependência econômica das formações sociais periféricas, é um ensaio preliminar para o retorno da política e, por corolário, da deliberação. Não há política no atual contexto do capitalismo mundial integrado.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor da UNEB.
[1] Em 2008, Em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social, definimos a política democrática como enfrentamento leal dos conflitos.
[2] MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 8.
[3] Habermas tem resgatado o conceito de deliberação esvaziado da dimensão profunda que tem em Aristóteles.
[4] ENGELS, Friedrich. A Origem do Estado, da Família e da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 160.
Ignota, no entanto brilha
Felina, na desconfiança
Pressentido tudo
No presságio dos pélagos
Em busca de algum signo
Que possa explicar
em breu
em chuva,
narinas e olhos
em fúria
em lâmina, cortando a superfície
para revolver a mina explosiva
abrolhos
Felina, na confiança felina
Sutil e densa
Sempre além
E assim, ela, brilha nela mesma
Quando é tudo
Desde que tudo exploda
Que tudo transcenda
Que tudo seja tudo
Que o bosque seja pássaro
Que a noite seja estrela
Que o rio seja água
Que no paladar a laranja
Lavre a voz adstringente
Lavre a voz luminosa
Lavre a voz na foz no fogo
nos vãos
em pleno dia
buscando a foz
A voz pela voz
Para esplender
Para ferir
Para sangrar.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Sobre o centenário de João Cabral de Melo Neto
No prelúdio da discussão sobre o conceito de natureza em Schelling, Hegel afirma: ”mas as pedras clamam e se suprassumem no espírito”
Neste interstício entre o inorgânico e o orgânico, o aspérrimo mistério da vida a desafiar a atenção aguda dos filósofos, dos poetas e dos cientistas.
A poesia de Cabral é uma inspeção meticulosa, difícil, bruta e afirmativa do clamor das pedras. A pedra não como metáfora da imobilidade, mas da maleabilidade das formas com que a vida em seus meandros e em seus enclaves complexos se materializa. A lição de pedra que resiste ao fluir, mas, ao fluir, a ser maleada.
O recurso à pedra não é um sucumbir ao imediato, mas uma forma de evitar a dispersão das representações vazias em que incorrem com muita facilidade a poesia sofrível de éter, nácar e nenúfar. Contra esta loucura que obsidia a poesia, João Cabral busca elementos nas experiências do enfrentamento com o inóspito, com as situações fronteiriças e, num combate espiritual à guisa de Rimbaud, a afirmação incondicional da vida. A poesia de João Cabral é repassada de um vitalismo. Não o vitalismo biológico de Deleuze nem o vitalismo matemático de Badiou. É um vitalismo periférico, da hulha e do betume, vitalismo a contra-pelo, contra o sol quando cresta demasiado, contra a queda.
O último Heidegger cedeu à possibilidade, que julgava inconveniente, de aproximar o pensamento e a poesia, colocando o poeta como o guardião do aberto. Não é fácil ser o guardião do aberto, pois, implica a assunção do risco. O aberto é o risco, mas, além e aquém da promessa, é o lugar da vida. No aberto, é preciso a força do cante a palo seco:
“O cante a palo seco
é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um canto que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia”
É na pura lâmina da voz que o poeta sustém com toda força os fios da vida.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Novo Canto Geral
Partir e levar, para outras plagas, o sonho irremido dos imigrantes dos sonhos
E, se pelo espaço, o olor das refregas carregue o céu de obumbras manchas
Cantar e cantar rente ao azul
Surgir dos encantos inapreensíveis pelo afã vão dos silogismos
E escoar rente ao azul pelo milagre do pão e pela balança da justiça a desabar
Nos interstícios do cio da aurora nos interstícios da fúria esperada dos justos
Partir, Partir e Partir sem medo e nada deixar além da ilusão de pertencimento
Para poder pertencer para poder amanhecer rente ao azul
Sargaços marinhos sob as insígnias do que parece não ter retorno
Os signos marinhos bafejam as falésias porque amar é sobrevoar insandecido os promontórios em velocidade infinita
Vergar os campos onde os sumos adstringentes dessuma sob o sol e o cristal ainda por elaborar cutila no pomar da infância
A infância só termina quando nada mais assombra
A infância só começa quando não se teme mais o desvanecer das formas
Tudo o que vive em plenitude merece renascer
A tua beleza pertence mais a mim do que a ti
Porque é em mim que ela viceja drástica
Com seus sustos, surtos e arrebatamentos.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
O corpo universal da nação
“Mágico que algumas cidades se colam ao céu numa proximidade encantatória, num agasalho que, nos dias nublados e cheios de mormaço, fortalece os liames da vida. No entanto, sempre foi levado a imaginar países cujo infinito é a nota mais peculiar. Pensou, um dia, no menino, diante do desamparo, olhando e procurando algum sinal singrando a infinitude sob o fantasma do fundador da República. Na mais funda inconsistência, ouviu a preleção de um amigo distante, o qual dizia que a clivagem mais importante é da interpretação: pois para entender um sentido vindo do Outro é necessário mudar a si mesmo, e, ao mudar a si, incorporar um sentido no qual a objetividade do conceito se adensa, tornando-se o corpo universal da nação: é o destino das pedras metamórficas e que se constitui, na linha platônica, em participação. Duas clivagens em uma só: a fundação renovada da nação”
O retrato do filósofo na solidão das colônias.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
O contratempo do tempo histórico
Um novo ciclo histórico se inicia mesmo arrastando para o turbilhão da história os problemas mais pungentes. Desde o encontro histórico, em 2002, entre Hu Jintao E George Bush, havia um consenso no imperialismo no sentido de ampliar os interesses comuns, dizia um importante chefe de Estado em 2017, sem explicitar quais seriam.
A singularidade gritante do nosso tempo é a ruptura do consenso imperialista, a derrocada do império norte-americano e a escalada de uma grande guerra comercial entre as potências e os problemas exegéticos que desata e a guerra contra a América Latina e Àfrica . Os tempos difíceis não terminaram. O imperialismo norte-americano sucumbe. A invasão do Capitólio sob os auspícios de Donald Trump simboliza a origem e o fim, reunidos. Às vezes, os símbolos comportam uma pesada materialidade. Os fantasmas de Hamilton, Madison, Jay flutuam inesperadamente extemporâneos. O imperialismo dos EUA não vai sucumbir sem detonar violência, mas o signo EUA já não significa muito.
No meio do torvelinho, um retrovírus que deflagra uma pandemia gerida para o controle e ao extermínio das populações e a pilhagem colonial das riquezas do mundo periférico.
Na América Latina, uma emergência democrática de base e a ausência completa de formas organizativas idôneas a canalizar e expressar essa força social ainda dispersa.
O esgotamento histórico do progressismo vazio e das formas partidárias que se lhe são congênitas. O fim do ciclo medíocre do PT, o triste exaurimento histórico do MAS-IPSP, o desvelamento de que o peronismo é superficial, a resistência hercúlea da Frente Sandinista, a descoberta de que nostalgias passadistas em Cuba é forma de fugir dos problemas, persistentes as figuras de Che e Chavez, por expressarem a vontade inquebrantável de mudar a América Latina, à guisa de um brado de Bolívar: “Si se opone la naturaleza, lucharemos contra ella y haremos que nos obedezca”, e, algumas cintilâncias, livros, jornais, inteligências, meio que perdidas no horizonte de ataque tão forte ao continente similar aos efeitos dos golpes em 64 e 73, no Brasil e Chile, sem saber que o suposto saber antigo se esfuma, na crise geral do sectarismo e do oportunismo, e a nova sequência que se desenha no mais sombrio tempo de interregno.
No núcleo, a amizade entre filósofos, o jornalismo radical, a consolidação do marxismo ortodoxo, na denúncia das formas de poder necrófilo que se arroga o direito de usurpar riquezas e eliminar parcela da humanidade e a necessidade imperiosa de reinventar o direito público internacional e o regresso às formas partidárias ortodoxas de contradição antagônica.
Veremos o que pode ser o signo China e o desafio histórico que recai sobre Xi Jinping e Wang Huning.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.