DA APROPRIAÇÃO PRIVADA DA LINGUAGEM À ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO CAPITAL
“O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes’’ Mikhail Bakhtin (Volochínov)
A hermenêutica filosófica de índole gadameriana reduz o ser à linguagem. O ser a ser compreendido é linguagem- eis a divisa mais forte dessa corrente. Aposta-se que, na linguagem, adensa-se toda a historicidade da tradição ancorada no acordo comunitário. A redução de toda ontologia- teoria do ser enquanto ser- à linguagem é, deveras, idealista, mas ao mesmo traz em relevo o papel que a linguagem cumpre na dinâmica da sociedade. O semiólogo russo Mikhail Bakhtin traz aportes mais dialéticos e demanda o estudo dos signos na materialidade concreta e diante e dentro da correlação de forças. Como afirma, se a linguagem é indiferente às classes, por sua vez, as classes não são indiferentes à linguagem.
No plano jurídico, a forma com que o legislador plasma as leis e o papel crucial no uso da linguagem cumpre papel decisivo e merece atenção de toda comunidade. Pode-se afirmar que, na técnica legislativa de construção dos documentos normativos, estabelece-se a verdadeira refrega pela produção dos sentidos e quem produz os sentidos detém todos os elementos para forjar a política de uma nação. A própria colonização inicia-se pelo poder de designar, de dar nomes, por isso, é um risco fatal a uma sociedade o monopólio da produção dos sentidos pelos agentes coloniais do império. A questão é mais premente quando se percebe que toda legislação a ser produzida deve instaurar sentidos equivalentes ao texto constitucional. Dessa forma, a legislação não pode ser vista como ancilar à constituição, mas como concretização dos sentidos analógicos da constituição. Nos ensina a experiência que uma constituição, por mais avançada que seja, não se realiza se não houver uma legislação ulterior que se lhe desdobre e se lhe dê efetividade. Não se deve descurar das produções das leis como continuação e como efetivação do projeto constitucional.
Assim como o interprete pode atribuir sentidos alheios à moldura analógica da norma, embutindo sentidos estranhos ao sentido literal, apropriando-se da lei, na legislação também é possível pela redação deliberadamente anticonstitucional entabular outra modalidade de apropriação privada da linguagem. Noutras palavras, é possível promover a apropriação privada da linguagem pelo ato de legislar, discrepando-se, distorcendo-se, anulando-se os sentidos constitucionais.
Ao regulamentar a questão ambiental, a constituição traçou critérios qualitativos que condensam de forma plena a concepção da sustentabilidade, que deve ser entendida como manutenção salutar do metabolismo ser humano e natureza para as gerações atuais e futuras.
Estabelece o art. 225 da CRFB o direito ao meio ambiente equilibrado, o qual deve ser estruturalmente vinculado às balizas objetivas que caracterizam a função social da propriedade. Articula-se a proteção do meio ambiente ao cumprimento da função social da propriedade. As notas definidas no art. 186 da CRFB para a efetivação da função social da propriedade são:
- Aproveitamento racional e adequado;
- Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
- Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
- Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores;
Tais balizas necessitavam de desdobramentos e, no fazer os detalhamentos, esses elementos foram, por meio da legislação infraconstitucional, desvanecidos, esfumados e desnaturados de tal forma que se pode afirmar que o texto foi submetido a uma espécie de revogação pela lei inferior. É preciso cuidar da produção dos sentidos. Só para criar a imagética adequada: lançar um número de animais em certa propriedade, por si só, configuraria cumprimento social da propriedade de forma a favorecer o latifúndio e o avoengo coronelismo.
A lei 8.629/93 estabelece como aproveitamento regular:
Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguinte sistemática:
I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
II – para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.
Veja-se que, conforme define o incisivo II do § º 2 do art. 6 da indigitada lei, a quantidade do rebanho define o aproveitamento regular, frustrando a expectativa constitucional. Trata-se de um caso de apropriação privada da linguagem por intermédio da legislação.
O projeto de lei 2633 segue o mesmo curso, pois, apropriando-se da linguagem, esporeia a acumulação primitiva do capital, suprimindo a base fundiária dos povos originários e dos camponeses. É condição básica de reprodução do modo de produção capitalista a contínua acumulação primitiva do capital- dizia Marx, esse funcionário da humanidade. O capitalismo não abdicará, sem resistência, da retirada da base fundiária dos povos originários.
Não há apropriação das terras dos povos originários sem a apropriação privada da linguagem. Consoante afirma Bakhtin:
Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presenta em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação 1
É preciso estar atento para evitar que, sob o pretexto de regulamentar a constituição, opere-se rarefações ideológicos verbais, aniquilando-se os sentidos comunitários que a constituição homizia e, por sua existência mesma, instaura nos momentos de armistícios sociais.
- BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010, p.38
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Deixe um comentário