Curso de corte e costura: kitsch sob medida

‘’Por querer trazer-te, filho,/ para a entranha do sorvete,/ para longe do real,/ para as páginas do azul,/ para as cores da linguagem,/ para os lábios do silêncio,// fiz-me pária dos apátridas,/ fiz-me algoz dos sem-vozes,/ fiz-me o ponto do final./ Fui-me.’’ (Nauro Machado, Poema)

CioranCioran, filósofo romeno, ao esboçar traços sobre a genealogia do fanatismo, diz-nos que a necessidade que o homem tem de mitologia triunfa sobre a evidência e o ridículo. De imediato, tal se nos afigura bastante pertinente a este bosquejo de ensaio.

Há sempre um risco em falar do próprio tempo. Os que nos cercam, em polvorosa, veem a nossa quietude como disparate. Todos correndo e vocês – dois ou três – aí sentados, buscando palavras, revirando sintaxe? Não notaram que estamos todos, exceto vocês, salvando o mundo? Assim nos interrogam, esses novos templários.

Uma palavra: kitsch.

O silêncio lacera. Acutila a (falsa) harmonia que o estrépito nos presenteia, obriga-nos ao peso da clareza a propósito de nós mesmos. À leveza, no entanto, oratórios e templos. Tão mais aprazíveis – este, o imperativo – as alturas, os pés distantes do chão, as feridas longe do sal da terra. E tudo isso com barulho, estardalhaço, balbúrdia: anulados pela fala. E tudo isso com arrogância, falso Absoluto, erguendo um templo por dia.

Uma música: Kitsch Metropolitanus.

Deliberadamente, abdicamos, neste instante, da crítica com viés artística, engendrada pelo Belchior. Importa-nos relacioná-la ao contexto (reiterado) e às observações de Kundera, precisamente as contidas em A insustentável leveza do ser.

O kitsch é um ideal estético. Consoante Kundera, há um acordo categórico com o ser, o qual exsurge para negar a merda, incutindo-nos mesmo que ela inexiste. Bem por isso, o kitsch exclui de seu horizonte tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável. Os grupos, mais do que ninguém, sabem de tal. Não só. Na verdade, aproveitam este instrumento em busca de visibilidade, prepotência etc. etc. Ato contínuo, possibilitam o psitacismo, provocam a repetição inconsciente – e triunfam. (Ora, sem psitacismo não há grupo.)

Este ideal estético, esclarece Kundera, ‘não se interessa pelo insólito, ele fala em imagem-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na grama, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor’. Em sequência, orienta, reduz todas as possibilidades a apenas uma, os caminhos não mais se desdobram: vereda única. ‘O kitsch’, diz-nos o autor, ‘faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de crianças correndo no gramado!’.

Não obstante, os que integram os grupos, pelo gosto do auto-engano, preferem falar em autonomia, autenticidade – justo eles, que não as conhecem.

Cá, parece-nos acertado evocar (já era hora!) a composição do Belchior. ‘Que tal usar brilhantina?/ No país da vaselina’, pergunta o poeta. E calha muito bem aqui. Vaselina, ora, acabou se tornando gíria para designar indivíduo hábil no trato, que acomoda muitíssimo bem suas ideias aos interesses do momento. Algo parecido ao que disse Groucho Marx, comediante norte-americano: ‘Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros’. Mas não é tudo. Além da vaselina, o adepto do kitsch metropolitanus necessita pavonear-se, evitar o olvido dos holofotes.

Imediatamente, entoa:

‘Que gente fina! gentinha…

Rainha em puxar tapete

Não posso entrar numa sala

Que eles vêm de cassetete

 Kitsch metropolitanus

Essa moçada promete

Garotos clones mutantes

Com que gastar meu confete?’

Cá, a faceta totalitária do kitsch. Se eles vêm de cassetete, Belchior, tal se deve à possibilidade de ameaça. Tudo o que aterroriza o kitsch é banido da vida. Os grupos, distinguindo apenas um caminho, o da Verdade Suprema e inquestionável, afugentam qualquer discordância. Ora, já aqui se percebe, todo grupo, orientado pelo kitsch, não perdoa a individualidade de cada qual, extermina a liberdade particular, em nome de um todo que ele próprio não crê absolutamente. Falam em liberdade plena e, em passo contrário, edificam a figura do líder, boca que enunciará os desejos de todos (?).  Ato contínuo, fazem do interesse particular (aprenderam com Ulpiano!) algo supostamente geral, homogêneo.

O kitsch, amigo Belchior, contorna imagem de látego.

De resto (o desfecho é sempre contumaz), importa-nos dizer que, ‘nenhum de nós é sobre-humano’, afirma Kundera, ‘a ponto de poder escapar completamente ao kitsch’. Necessário, ainda assim, conservarmos, em nós, o homem que interroga e não aceita facilmente o dito e repisado, verdades arranjadas às pressas. Este homem, afinal, por não abandonar incerteza e dúvida, é o único adversário do kitsch totalitário.

Breno S. Amorim

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