Ardências indolores
“E tu, por que tornar da dor ao meio?”
(Alighieri, Dante. A divina comédia)
Ao longe, avisto um homem. Talvez não um homem espesso, solidamente homem. Miragem é que não há de ser. No deserto, vê-se, imaginativamente, poças d’água. Faz calor. Não tremeluz a minha vista, conquanto. Um copo, violentamente abastecido, impossibilita o embaciamento do que se me apresenta. O homem, ei-lo.
Neste instante, ele vaga pelos bares. Escolhe um e entra. Há barulho, algazarra, arrastar de cadeiras. Não obstante, posso ouvi-lo: fala sobre os livros que leu. Cita um autor, página 231, parágrafo terceiro. De chofre. É ele o homem que, durante o dia, encafua-se atrás de uma mesa, refrigério absoluto, a imprimir ordens via telefone. Posso reconhecê-lo, protocolar, quando do ocaso do sol – e aos finais de semana -, vai ao bar e, entre um gole e outro de cerveja, derrama-se em canto: E no escritório, em que eu trabalho, e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor… Artifícios enevoados, devaneios que não resistem ao esvaecer do álcool. O homem cujos pés jamais percorreram um quarteirão, ante o frenesi de ouvidos atentos, conta causos, malandaças, desventuras… Extraídos de livros múltiplos, assina-lhes com nome próprio. Delira com delírios alheios.
Há momentos em que homem e personagem confundem-se. Deliberadamente, por suposto. Durante o dia, o homem é sempre pragmático, corriqueiro, calculadora itinerante, preocupado com outros dias – inexistentes. À noite, Gregor Samsa o inveja a metamorfose: és hora de perfumaria, desprendimento manufaturado. Há homens que são muitos. O poeta Manoel de Barros dizia-se muitas pessoas destroçadas. Nosso personagem, porém: dois em um, por ocasião. Mesmo o conforto sufoca e, sem abdicar de tal, ele engendra ardências que não tocam a pele. Sofre, confortavelmente. E tudo é dor e beleza, aos finais de semana.
Breno S. Amorim
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