INTERPRETAÇÃO ESTRUTURAL E RESOLUÇÃO DE ANTINOMIAS
A unidade do sistema não é uma situação empiricamente dada, mas fruto da cognição das categorias jurídicas. Assim, é possível, no plano da linguagem prescritiva, a existência de contradições e que, apenas mediante a intervenção interpretativa, podem ser solucionadas.
Na lição lapidar de Friedrich ao tratar do tema da unidade da constituição:
“A unidade da constituição enquanto visão orientadora da metódica do direito constitucional deve antepor aos olhos do intérprete, enquanto ponto de partida, bem como, sobretudo, enquanto representação do objetivo, a totalidade da constituição como um arcabouço de normas. Este, por um lado, não é destituído de tensões nem está centrado em si, mas forma, por outro lado, provavelmente um todo integrado com sentido. No quadro do que pode ser argumentativamente defendido e fundamentado em termos de método, o intérprete deve procurar ajustas possíveis contradições que apareçam como resultados parciais no processo de concretização de modo a harmonizá-las umas com as outras no resultado.”( Müller, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, página 82).
A unidade é fruto do labor interpretativo e não uma situação já existente. A formalização do direito depende da atividade interpretativa. Por isso, a carência de metodologia que oriente a interpretação é o maior obstáculo à realização objetiva dos sentidos.
A metodologia hodierna, em razão da complexidade inerente à aplicação do direito, tem tematizado o tema da derrotabilidade da norma quando circunstâncias inusitadas-que conformam o suporte fático – não previstas demonstram um abismo entre a generalidade da norma e a concretude específica da situação, um descompasso entre a realidade juridicamente determinada na hipótese abstrata e a realidade que constitui o suporte fático.
A questão da derrotabilidade da norma não tem que ver com o argumento da excepcionalidade que, muitas vezes, constitui um lugar comum argumentativo- topos- de fácil uso para suspender a aplicação de norma vigente. A própria exceção, nas situações previstas pelo ordenamento- estado de defesa, estado de sítio, ostenta formas prévias que devem conformar o atuar estatal. O direito formaliza a própria exceção, mediante critérios objetivos, expungindo o arbítrio.
Na verdade, a questão envolve a espinhosa tarefa de interpretação do direito, que constitui verdadeira arte. Gadamer, invocando Aristóteles, afirma:
“Aplicar não é ajustar uma generalidade já dada antecipadamente para desembaraçar em seguida os fios de uma situação particular. “ (GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2012, página 58).
Cumpre ressaltar que, na linha da fecunda teoria estruturante do direito, a metodologia atual não alberga a teoria da força normativa dos fatos. Jellinek afirmava que todo o direito não é originariamente mais que um uso de caráter factual. Daí decorre a sua teoria da força normativa dos fatos. (apud Hermann Heller, Teoria do Estado, São Paulo: Mestre Jou, 1999, p. 298/9).
Se remontarmos a gênese das constituições nos deparamos com um poder que, por não ter nenhuma norma prévia que o fundamente, se revela puramente factual. Por isso, critica-se a teoria da norma hipotética fundamental justamente pela sua tentativa vã de legitimar um poder cuja força advém do mero fato de ser obedecido, não precisando, portanto, de nenhuma norma que lhe legitimasse.
Tais digressões não são meramente teoréticas já que há decisões invocando a teoria da força normativa dos fatos. Isto porque decorre da presente teoria a seguinte diretriz: o decurso do tempo pode gerar situações de fato não só equiparáveis, mas que suscetíveis de convalidação em situações jurídicas.
Superada está a visão que limita a aplicação à técnica de subsunção. Na metodologia moderna, surgem novas técnicas preocupadas em respeitar a singularidade irredutível dos fatos, afastando o brocardo ”fiat justitiae pereat mundos’’, mas que não perdem o horizonte formal do direito.
Muitas vezes a preservação de um estado de coisas (fático) revela-se mais salutar e mais justo do que a aplicação cega da norma. Enfim, busca-se superar uma separação rígida entre ser e dever ser, evitando-se que a aplicação da lei, sem consideração da singularidade do caso, possa gerar efeitos catastróficos.
A Chaim Perelman não escapou tão lancinante e pungente questão. Relata que, durante a guerra de 2014-18, como a Bélgica estava ocupada pelas tropas alemãs, o Rei exercia sozinho o poder legislativo, sob a forma de decreto-lei. A impossibilidade de reunir as Câmaras impedia que se respeitasse o art. 26 da Constituição, a saber: O poder legislativo é exercido coletivamente pelo Rei, pela Câmara dos Representantes e pelo Senado.
Foi com base no dispositivo acima que os decretos-lei foram impugnados junto à Corte de Cassação. Não obstante, a Corte não hesitou em considerar constitucionais os atos normativos editados pelo Rei já que este foi o único poder que preservou sua liberdade de ação. (in Logica Jurídica, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 104/06). Que conclusão o eminente teórico retira de tal decisão? Vejamos:
“Se devêssemos interpretar ao pé da letra o artigo 130 da Constituição, o acórdão da Corte de Cassação teria sido, sem dúvida alguma, contra legem. Mas, limitando o alcance deste artigo às situações normais e previsíveis, a Corte de Cassação introduz uma lacuna na Constituição, que teria estatuído para situações extraordinárias, causadas ‘ pela força dos acontecimentos’, ‘por força maior’, ‘pela necessidade'” (ob. cit. p. 107)
Assim, diante de situações fáticas imprevisíveis, introduz-se uma lacuna de forma que a norma não se aplica àquela situação.
Jan Schapp, em seu livro Problemas fundamentais da metodologia jurídica, critica a ideia de que a lei é um universal capaz de esgotar a priori todos casos sob os quais a lei se estendem. A lei, segundo o autor, é uma decisão voltada a atingir uma série de casos reunidos pela similitude. Da mesma forma, as súmulas, precedentes e jurisprudências.
Aduz o autor:
“De importância, neste contexto, manifestamente o fato de o legislador, via de regra, somente decidir com certeza poucas séries de casos expressivos, deixando de resto ao juiz a tarefa de, partindo destas decisões certas, incluir na regulação da lei mais séries de casos não tão claramente decididas” (Problemas fundamentais da metodologia jurídica, SAFE, 1985, p. 19)
Assim como a lei não é um universal que teria o condão de abranger todos os casos, a jurisprudência sempre emerge de uma série de casos decorrentes um feixe de fatos unificados juridicamente.
A nosso ver, portanto, o caso não é de lacuna, mas de antinomia entre textos. Ademais, de acordo com a lógica do razoável, o reconhecimento do nível estrutural da interpretação- intertexto- não se confunde com a invocação de princípios sem a devida dedução normativa para criar falsas antinomias. Não se nega a existência de princípios, mas é importante salientar que é necessária uma teoria da dedução normativa dos princípios para evitar a corrosão da coesão interna do direito constituído e legislado.
Também, a derrotabilidade não pode significa negar o sentido literal de um texto normativo, pois na medida em que o direito contém três níveis de interpretação, incluído o nível estrutural- do intertexto constitucional, podem surgir, em razão da própria complexidade do caso, antinomias entre textos constitucionais de maneira que a criação da norma- função da jurisdição- envolve não uma ponderação, mas aquilo que Recasens Siches denomina lógica do razoável em que a própria axiologia interna do direito que prevalece sem o sucumbir ao casuísmo.
No caso, a norma do art. 26 e a norma do art.130 colidiam com normas e princípios que consagravam à nação o direito à soberania. Nos debates, ficou claro que não se poderia privar a nação da soberania.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
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