ANÁLISE CRÍTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO
“Os textos: em princípio, doação universal. Se sobre eles opinamos ou se os iluminamos de algum modo- se fazemos com que se ampliem em nós-, operamos sobre um patrimônio comum.” Osman Lins
A teoria estruturante do direito, fundada por Friedrich Müller, oferece aportes metodológicos indeclináveis para toda teoria preocupada com a questão da interpretação/aplicação do direito. Pretende-se fazer aqui um breve estudo sobre as contribuições da teoria estruturante para a epistemologia jurídica e para a hermenêutica, reconhecendo os avanços e conquistas inegáveis e, ao mesmo tempo, fazendo as críticas necessárias para a evolução do saber. Nesse caso, as críticas são suscitadas pelo próprio caráter estimulante da teoria, buscando catalisar a energia interna que lhe é própria. Portanto, as críticas eventuais são, por si só, um elogio da teoria.
A base epistemológica axial da teoria estruturante é a necessidade de superação do dualismo metodológico entre dever ser e ser, norma e realidade, que está na base tanto do positivismo jurídico quanto do antipositivismo jurídico. Para demonstrar o quanto esse dualismo trespassa o debate jusfilosófico e o condiciona, gerando epistemologias e teorias interpretativas reducionistas, ora centradas numa validade abstrata, ora vinculadas à eficácia factual, irei tratar do modo como Kelsen e Hart desenvolvem o critério de identificação do direito a partir da questão-guia: como identificar uma norma jurídica válida?
Para Kelsen, em sendo o direito uma estrutura escalonada fundada no binômio fundamentação/derivação, a validade é a existência específica de uma norma. A norma, uma vez que foi produzida de acordo com o procedimento previsto para sua própria elaboração, passa a existir. A validade é, pois, a relação de pertinência abstrata ao ordenamento, independentemente do fato de a norma ser obedecida ou não. Nesse sentido, a validade é reduzida a um puro dever ser, neutro axiologicamente.
Já Hart parte da ideia de que um ordenamento, na medida em que fosse dotado apenas de normas primárias (que estatuem obrigações) padeceria de três defeitos: seria incerto, porque não teria uma norma de identificação da validade das normas; seria ineficaz, porque, na falta de definição dos órgãos que iriam averiguar o descumprimento de uma norma primária, a pressão social teria um caráter difuso e não institucionalmente organizada; seria estático, porque faltariam normas voltadas a expungir as normas obsoletas e a gerar novas normas acerca das novas situações emergentes da vida social-histórica. Para debelar esses defeitos, Hart prevê a existência de normas secundárias, respectivamente, de reconhecimento, de adjudicação e de modificação.
Verifica-se que, no âmbito das normas secundárias, a mais importante é a norma de reconhecimento, pois é a que permite a identificação do direito válido. Criticando a solução kelseniana da norma hipotética fundamental, Hart afirma que a validade do direito não pode ser uma questão de dever ser, mas uma questão de ser, isto é, de prática social. Por isso, para Hart, a norma de reconhecimento é uma prática social. Afirma:
“Porque enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido existir, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como um prática complexa, mas normalmente concordante dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato” [1]
É nos meandros da dicotomia epistemológica dever ser e ser que a teoria estruturante se insere. O direito, para não perder a base material, não pode ser reduzido à mera vigência entendida como pertinência abstrata à ordem jurídica, do mesmo modo, para não perder a normatividade, não pode ser reduzido a meros fatos, a uma suposta força normativa dos fatos.[2]
Entendendo que a normatividade, ao agasalhar a facticidade, tem referência à realidade da qual a metodologia não pode se esquivar sob pena de converter o direito em mera preexistência reificada, a teoria estruturante distingue programa da norma e âmbito ou domínio da norma. O programa da norma consiste no teor literal dos textos e o âmbito da norma na realidade materialmente determinante e determinada.
No que atine ao programa da norma, distingue entre texto e norma. O texto é a fórmula linguística que serve de baliza à interpretação, já a norma é o sentido que, diante do caso concreto, atribui-se ao texto. O processo normativo, nesse sentido, constitui a atividade complexa de converter textos em normas. A norma não é algo preexistente, algo subsistente em si, mas é fruto da interação entre a virtualidade do texto e o caso que lhe é constitutivo. Afirma Friedrich Müller: “Com efeito, a norma jurídica não existe, mas é criada pelo jurista decidente. Ele a cria não com base no virtual, mas, isso sim, partindo do virtual e com sua ajuda.”[3]
O texto é uma virtualidade porque necessita da mediação da leitura. Mas, no que concerne à noção de texto e a relação com o caso, Müller apresenta duas assertivas suscetíveis de crítica, quais sejam: 1) não é o texto que é vinculante, mas a norma produzida, 2) os fatos nunca obedecem a uma ordem linguística. Apesar da compreensão correta de que a norma não existe antes do processo de concretização, falta à teoria estruturante analisar a relação de continuidade entre o texto enquanto campo de ações linguísticas possíveis e o sentido adjudicado ao texto – que configura a norma.
Na medida em que a interpretação/aplicação necessita reformular o texto legislativo com outros signos mais desenvolvidos, mais amplos e mais claros, verifica-se uma continuidade expressa no que chamamos equivalência analógica[4]. O texto, portanto, ao instaurar um campo analógico, estrutura a sua própria leitura de forma que o intérprete está vinculado ao campo associativo e ao eixo temático analógico inerente ao texto[5]. O texto, portanto, vincula.
Outrossim, o texto não se encerra na mera textualidade, pois, já carrega em si toda uma facticidade própria; o texto, como salientava Heidegger, é um vir-a-ser-mundo, projetando uma facticidade que serve de modelo comparativo para o caso constitutivo. O texto, ao instaurar tipos, vem imbuído de predicados da realidade que servirão de paradigma para coleta dos dados empíricos que interessam ao campo jurídico. O caso concreto é interpretado com base nas similitudes com o vir-a-ser-mundo do texto.
O texto tipológico instaura uma série factual que serve de paradigma para aferição, pela via da similitude, da série de casos submetida à analise judicial. Consoante assevera Jan Schapp:
“De importância, neste contexto, manifestamente o fato de o legislador, via de regra, somente decidir com certeza poucas séries de casos expressivos, deixando de resto ao juiz a tarefa de, partindo destas decisões certas, incluir na regulação da lei mais séries de casos não tão claramente decididas”[6]
A teoria da norma como juízo lógico (Kelsen) ou juízo disjuntivo (Cossio) ignora justamente a realidade material que embebe a norma e que é, concomitantemente, determinante e determinada. Aqui, já se tangencia na questão do âmbito ou domínio da norma que é sempre uma parcela da realidade sujeita ao recorte do esquema normativo. Leciona Friedrich Müller:
“O domínio da norma é um fator coconstitutivo da normatividade. Ela não é uma soma de fatos, mas um nexo formulado em termos de possibilidade real de elementos estruturais que são destacados da realidade social na perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma e estão, em regra, conformados aos menos parcialmente jurídico”[7]
Supera-se, então, o dualismo metodológico que não só produz uma epistemologia desconectada dos problemas reais, mas uma metodologia incapaz de entender a interpretação/aplicação do direito na intersecção da lógica jurídica e da experiência social e histórica. O ordenamento jurídico não é uma coisa em si, fechada, preexistente, e unívoca, mas um campo de ações interpretativas possíveis em que a luta pelos sentidos se produz. O que denominamos Arquitetônica Jurídica Analógica é uma empreitada voltada a unir lógica e experiência, criando categorias voltadas à formalização equânime do ordenamento para, vincando o campo comunitário das ações linguísticas possíveis, evitar a suspensão colonial do direito tão ao sabor da colonialidade do poder e salvaguardar a esfera pública das intromissões dos interesses privados[8].
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] Ver: HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 121. Não cabe aqui discutir as aporias da norma de reconhecimento em Hart, mas apenas realçar que é uma questão em aberto, Para Hart, a norma de reconhecimento é como a regra de pontuação de um jogo que, mesmo orientando os jogadores, raramente é formulada de maneira clara. Dessa forma, a norma de reconhecimento serve de condição de sentido para a identificação das normas válidas e, ao mesmo tempo, é uma questão de fato.
[2] Um golpe nada mais é do uma facticidade que usurpa a normatividade e a axiologia ínsita à normatividade. A ressurgência da democracia na Bolívia, fruto das lutas populares, foi motivada, dentre outros elementos, pela atribuição ao governo oriundo do golpe do rótulo adequado de governo de fato, revelando-se, para todos, a carência de legitimidade normativo-constitucional. Remarque-se que uma das motivações do golpe era desacreditar o sistema eleitoral-analógico da Bolívia com vista a implantar sistemas autorreferentes de dominação. A luta política é, também, combate pelas palavras e pelos fatos. Sobre a relação necessariamente dialética entre fato e norma no plano constitucional, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes. Pensar desde a América Latina: a emergência de novas heteroutopias. Paulo Afonso, Oxente, 2021, capítulo 1.2, A constituição é o nome de quê?.
[3] MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59.
[4] Sobre a relação de equivalência analógica entre o texto de chegada e o texto de partida, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018. Na América Latina, o pensamento analógico já vinha sendo desenvolvido brilhantemente pelos filósofos Enrique Dussel e Mauricio Beuchot. Não haveria Hermenêutica Jurídica Analógica sem a base conceitual desenvolvida por esses dois grandes mestres. Talvez por não conhecer o pensamento analógico latino-americano, Müller, apesar dos avanços, tenha se enredado em muitas aporias.
4 SCHAP, Jan. Problemas fundamentais da metodologia jurídica. Porte Alegre, SAFE, 1985, p. 19. A Arquitetônica Jurídica Analógica permite uma refundação da teoria do precedente e a compreensão pouco divulgada de que os fatos também são interpretáveis embora um fato não se identifique imediatamente, como quis Nietzsche, com a sua interpretação.
[7] MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59.
[8] A suspensão colonial do direito se dá quando, pela corrosão do devido processo legal, se persegue injustamente o povo ou intelectuais e líderes populares e, também, quando se protege os apaniguados da colonialidade que, incorrendo em crimes, permanecem, sob a complacência das instituições, impunes. A Hermenêutica Jurídica Analógica também combate leis com rarefação discursiva que, ensejando a apropriação privada da linguagem, permitem a injusta persecução penal de pessoas eleitas como inimigas. Na verdade, trata-se de não leis. O ato patriótico norte-americano é exemplo gritante de não lei.
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