SOBRE A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ANALÓGICA ESTRUTURAL

“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.”

Gregório de Matos

Lourival Vilanova alertava que, ao usar a palavra direito, era necessário distinguir o direito como atividade de cognição sistemática das normas do direito enquanto ordem coativa: distinguir a linguagem científica, que descreve as normas, da linguagem prescritiva das normas jurídicas mesmas. Noutras palavras: diferenciar as proposições científico-descritivas das proposições deôntico-normativas.

A questão se torna mais complexa quando se trata de conferir unidade ao sistema jurídico. Diante da pluralidade inevitável das normas, como dar consistência axiomática ao sistema, remontando-se toda a pletora de normas a uma única e mesma fonte erigida em chave-mestra- que sela a unidade do sistema? A teoria pura do direito de Kelsen intenta resolver a questão mediante a hipótese da norma hipotética fundamental.

Para Kelsen, o direito tem elementos e estrutura. Os elementos são identificados nas normas jurídicas e a estrutura decorre da natureza das relações entre os elementos. Vê-se que os elementos não se confundem com a estrutura, mas a maneira com que os elementos se relacionam forma a dinâmica intrínseca da estrutura. Que tipo de relação as normas entretecem entre si? Na visão da teoria pura, as normas se relacionam por uma relação de fundamentação-derivação: uma norma encontra seu fundamento de validade em outra, isto é, foi gestada conforme a forma procedimental definida por normas de escalão superior.

O sistema, portanto, tem uma estrutura escalonada de forma que uma norma encontra seu fundamento de validade em outra norma. Aqui, depara-se com o grave problema lógico da regressão ao infinito. No ato de remontar uma norma inferior a uma norma superior, ao chegar-se, mediante a regressão, à primeira constituição, abica-se nos confins do ordenamento, emergindo a questão central: em que norma se baseia a constituição?

Kelsen responde à aporia, admitindo a hipótese de uma norma hipotética fundamental, norma que não é posta, mas pressuposta logicamente, figurando como condição gnoseológica de toda ordem jurídica. Se o direito é uma ordem coativa, fundada em normas, como pode ter por fundamento uma norma hipotética não positivada? Não incorre numa contradição insolúvel?

Os juristas influenciados pelo positivismo lógico engendraram uma interpretação engenhosa da norma hipotética fundamental. Para fugir a crítica da contradição performática da hipótese de uma norma hipotética fundamental, fazem a distinção entre condições de sentidos– do plano da metalinguagem- e as enunciações significativas– do plano da linguagem-objeto. As proposições que funcionam como condições de sentido pertencem a nível diverso das enunciações significativas.

A norma hipotética, ao estar no plano da metalinguagem, cria as condições de sentido para existência específica das normas, não figurando no plano das normas mesmas de forma que o argumentado da contradição é superado. Para o positivismo lógico, só há contradição entre proposições do mesmo nível.[1] Os enunciados de níveis diferentes são autorreferentes, aplicando-se apenas no âmbito do próprio plano, e, por isso, não geram contradição.

Podemos recortar desse instigante debate a seguinte premissa: a ciência jurídica cumpre papel decisivo na formalização sistêmica dos dados normativos. O sistema jurídico, nesse sentido, seria uma função da cognição científica e não uma situação empiricamente já dada.

Dentro dessa lógica, sem negar a dialética entre o modelo teórico e os dados empíricos, toda interpretação jurídica envolve sempre uma atividade de formalização lógica da estrutura jurídica. Se adotarmos o modelo teórico da linguística, podemos definir a estrutura como sistema diferencial, isto é, como um jogo de oposições e de relações internas de dependência[2].  Ao gizar a interpretação estrutural, deve o intérprete inserir, conforme declinei no livro As Antinomias do direito na modernidade periférica, o texto na rede intertextual a que pertence, a qual tem que ver com o horizonte do eixo temático para remarcar as similitudes e diferenças entre os elementos.

Deve-se, portanto, agrupar os temas de acordo com o eixo temático. Enquanto na interpretação textual, o critério que sobressai é o da equivalência analógico- linguística entre o texto de chegada e o texto de partida, na interpretação estrutural, o critério remonta à teoria interpretativa de Santo Agostinho, para quem uma interpretação correta de um texto sempre se confirma em outras partes do texto.

Na interpretação estrutural, as relações de dependência são exaltadas para evitar a alteração do sistema, preservando-se a coerência interna. Aqui, a articulação do eixo temático é crucial para manutenção da intangibilidade do ordenamento. Isso porque, havendo a mudança de uma parte, muda-se todo o ordenamento.

Exemplo dessa deturpação da estrutura sob o pretexto de defendê-la se deu no julgamento do Habeas Corpus de numero 126.292-SP, no Supremo Tribunal Federal, quando, criando-se a oposição inexistente entre a regra da presunção de inocência e a efetividade processual, simplesmente, em nome de uma suposta efetividade, anulou-se o texto normativo que consagra a presunção de inocência. Por meio de falsa interpretação estrutural, revogou-se uma norma do sistema normativo, alterando-se, por meio de interpretação, todo sistema jurídico. Outro exemplo se deu no julgamento da Medida Cautelar na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 5889- DF em que se declinou a oposição do voto impresso com o sigilo do voto, suspendendo-se a norma que consignava o voto impresso.  Fazendo-se a inserção da regra da presunção e do voto impresso no eixo temático próprio, verifica-se que o sistema confirmaria a higidez das normas. O sentido estrutural serve, em regra, para confirmar o sentido textual. A importância da metodologia é notória e evidente, pois, mediante critérios rigorosos, permite distinguir uma falsa antinomia de uma verdadeira e, sobremodo, uma formalização adequada e correta do ordenamento jurídico.

Portanto, a formalização empreendida deve ser feita de maneira a conferir maior coerência interna ao sistema e não lhe derruir a consistência mediante a criação falaciosa de oposições e de falsas antinomias para, mediante o cotejo entre normas que estariam no mesmo eixo temático, dar maior peso a uma em detrimento da outra. No Brasil, infelizmente, quando se quer negar aplicabilidade a uma norma vigente coerente com a axiologia do sistema jurídica, cria-se, artificiosamente, uma oposição com outra norma, para, diante de uma falaciosa concordância prática, dar primazia a norma que faz o intento prévio do intérprete, arruinando-se, por meio de errônea interpretação estrutural, o sentido literal do texto normativo que se quer negar aplicação. Uma forma sutil de revogar, pela interpretação, normas vigentes.[3]

 Aristóteles, ao analisar o sentido literal, declina:

“Há três modos ligado à homonímia (equivocação) e à ambiguidade: 1) quando a expressão ou nome indica propriamente mais de uma coisa, como aetos e cuon; 2) quando habitualmente empregamos uma palavra em mais de um sentido; 3) quando uma palavra apresenta mais de um significado, em combinação com uma outra palavra, ainda que isoladamente apresente um só significado’’[4]

Da mesma que uma palavra que ostenta sentido definido isoladamente, ao ser oposta a outra, mergulha na equivocidade, corroendo-se seu sentido analógico, ao criar falsas oposições entre as normas, produz-se uma equivocidade artificial, sendo que, por uma ponderação ad hoc, revoga-se uma norma que, uma vez lida de forma correta, permaneceria íntegra no ordenamento. Ocorre, portanto, no plano estrutural, uma apropriação privada da linguagem, usurpando-se os sentidos estabelecidos pela comunidade política no exercício do poder constituinte. A apropriação privada da linguagem, no plano da interpretação da constituição, é uma forma usurpar o poder constituinte de titularidade exclusiva do poder popular.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Sobre esta inquietante questão ver: WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, especialmente o capítulo II. No debate que tivemos, demonstrei minha discordância da solução apresentada porque, mesmo afirmando que a norma hipotética fundamental é pressuposta, Kelsen, ao afirmar que ela se enfeixa na proposição ‘’deve obedecer tudo o que prescreve a Constituição’’, conferia-lhe natureza deôntica: situava-a, então, na ambiguidade entre cognição e deontologia. Concordando com Alf Ross, já afirmava que a teoria pura do direito era uma espécie de jusnaturalismo conceitual, tese que ele dizia professar também. 

[2] Sobre a aplicação do método ao estudo dos mitos, ver a Antropologia Estrutural de Claude Lévi-Strauss.

[3] Mais uma vez, revela-se fecunda a teoria do cálculo dos predicados não só para a delimitação da moldura analógica, mas das possibilidades estruturais do ordenamento pelo balizamento adequado das antinomias reais, desmascarando-se, outrossim, as falsas ponderações que se lhe esgarçam a coerência interna. O papel da Arquitetônica Jurídica Analógica, cuja ossatura já desenvolvi no livro As Antinomias do direito na modernidade periférica, é a formalização escorreita do ordenamento, garantindo-se uma aplicação, objetiva e correta, do direito.

[4] ARISTÓTELES. Órganon. São Paulo: Edipro, 2005, p. 550. Destaques nossos. O pensamento holográfico, desde que subtraído à mesmidade e desde que engajado na analogia, pode ser fecundo na análise da intersecção dos três níveis básico de toda interpretação: textual, estrutural e histórico. Observe-se que a apropriação privada acontece em todos os níveis, mas de forma específica a cada nível. Vejamos um exemplo de apropriação privada no nível histórico. Cajetan, intérprete de Tomás Aquino, mesmo desenvolvendo a analogia no plano ôntico, trouxe colaborações que, aplicadas ao campo jurídico, contribuem para a construção de uma hermenêutica jurídica consistente. Cajetan vislumbra vários tipos de analogia. Mesmo a mais tênue, a analogia por desigualdade, confere critérios seguros para a interpretação jurídica. Saudável se predica de vários corpos, mas alguns são mais saudáveis do que outros, afirma Cajetan. Nesse sentido, o predicado saudável tem matizes diversas a depender do sujeito. Em várias decisões jurídicas, surge a discussão se aeronaves e embarcações se subsumem ao conceito de veículo automotor. Aplicando a analogia por desigualdade, verifica-se que, não obstante as diferenças entre um avião e um carro, ambos se enquadram no âmbito da analogia por desigualdade, isto é, pertencem ao mesmo gênero de forma que decisões que artificiosamente colimam extrair uma espécie do gênero a que pertence constituem forma de apropriação privada da linguagem. Cabe remarcar que a não aplicação rigorosa da mais tênue das analogias- a analogia por desigualdade- gera inúmeros prejuízos ao interesse geral. No Recurso Extraordinário 379572, no Supremo Tribunal Federal, a invocação da interpretação histórica foi equivocada porque o que a caracteriza, em regra, é o caráter diacrônico- o desvelamento de novas possibilidades sígnicas sem corroer o sistema, realçando-se o sentido textual e intertextual- e não o sincrônico. Aqui o sentido histórico diacrônico permite uma interpretação mais adequada do que é veículo automotor, conferindo ao texto sentido adequado. Um nível reforça o outro. No caso da apropriação privada da linguagem, sempre um nível interfere erroneamente no outro. Nem precisaríamos de reforma tributária, bastaria aplicar com o rigor o método hermenêutico.

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