Arquivos mensais: abril 2025

SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DO IMPEACHMENT[1]


A Nelson Werneck Sodré, na comunhão dos marxistas e comunistas ortodoxos

As incertezas, que pairam sobre a natureza jurídica do Impeachment, tem a ver não com a abstração que se atribui às normas jurídicas que o regula, mas aludem à complexa urdidura do exercício de poder nas democracias modernas.

Monstesquieu já tinha salientado que a dinâmica do poder exige a moderação enquanto técnica que limita o poder internamente, e nas relações com a ambiência, isto é, a sociedade civil. 

Escreve Louis Althusser:

“A moderação é outra coisa:  além do respeito à legalidade, é o equilíbrio entre os poderes, isto é, a partilha de poderes entre as autoridades constituídas, e a limitação ou moderação das pretensões de uma autoridade em relação ao poder de uma outra.”[1]

Nas relações internas, há um conjunto de regras que regulam a atuação estatal, pelo devido processo legal, e a necessidade de respeitar o sistema de competência. Portanto, duas questões sobressalentes nas sociedades modernas: o agir estatal obedece ao quadro normativo vigente, inexoravelmente; há divisão jurídica do espectro de ação que cabe a cada poder e a cada órgão estatal.

Toda tessitura constitucional serve para garantir a paz como conceito político essencial.

Já escrevemos, na obra ‘’Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade’’, que o sentido de um termo é alcançado em termos de consciência prática.[2]

Michel Troper, ao analisar os usos da expressão ‘’separação dos poderes’’, declina:

  1. Uma regra negativa que veda a possibilidade de atribuir toda função     jurídica do Estado a um só órgão;
  2. Um princípio segundo o qual autoridade deve ser especializada e independente;
  3. Um sistema no qual a autoridade é somente especializada, mas não independente;
  4. Um sistema no qual os órgãos são independentes sem serem necessariamente especializados;
  5. Um sistema no qual a autoridade é submetida a um certo balanceamento;
  6. A repartição de competência em um sistema federal;[3]

Fazendo uma síntese das lições do constitucionalista italiano, podemos definir a meta –regra das separações dos poderes como um conjunto de regras que reparte, mediante a distribuição de competências, o poder em funções especializadas e estrutura um balanceamento entre as funções erigidas em mecanismo de defesa da vontade geral, da liberdade e da paz social.

É nesse engajamento (enjeu) que o processo de impeachment se revela e que se entremostra de maneira insofismável a natureza dos crimes de responsabilidade.

É um sofisma que o impeachment é um processo de natureza política definido por critérios políticos.

O processo de impeachment é de natureza jurídica e se define pelas normas que tipificam, com rigor, os crimes de responsabilidade e que consagram o devido processo legal substancial.

O direito internaliza conteúdos de várias ordens e, em sendo a validade conurbação interna ao direito, a questão reflexionada torna-se jurídica e deve ser arrimada na tipicidade[4], que caracteriza o atuar do direito em uma Democracia.

Os crimes de responsabilidade são tipificados e configuram situações complexas que conflagram crises inerentes ao exercício do poder e do devido processo legal.

Os crimes de responsabilidade, em geral, condensam situação de esgarçamento da moderação inerente à separação dos poderes, de erosão do sistema de competência, que, ao final, levam à concentração teratológica de poderes e a destruição dos direitos, garantias e liberdades democráticas.

Os crimes de responsabilidade afetam o núcleo do poder que, desprovido das bitolas e freios legais, desanda na opressão, na dominação e na corrupção do conceito de soberania, interna e externamente e da corrosão do direito enquanto solda das relações sociais.

Nesse contexto, pode-se concluir que o impeachment é um processo gravoso em razão de graves questões de Estado e, portanto, deve-se revestir da tipicidade e do devido processo legal substancial, evitando-se, ao mesmo, a condescendência com governos corruptos e corruptores e a perseguição de políticos libertários.

O processo de Impeachment é um rigoroso processo de natureza punitiva e se baseia no longevo topos, conquista civilizatória: não há crime sem lei penal anterior. Portanto, atinge todos os que exercem cargos articulados à estrutura central de poder estatal.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Texto elaborado a partir de conferências e aulas de direito constitucional.

[2] ALTHUSSER, Louis. Montesquieu, la politique et l’histoire, PUF, 1959, p. 104.

[3] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, p. 40.

[4] TROPER, Michel. Le nuove separazioni dei poteri. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2007, p. 9-10.

[5] Sobre a validade como criação da ordem jurídica, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024.