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POR UMA HERMENÊUTICA DA PARTICIPAÇÃO PARENTÉTICA
“No direito moderno, os burgueses são forçados a dar à lei uma expressão geral” Karl Marx
O ser humano é ser-em-situação, isto é, um ser que assume um conjunto de hábitos necessários à orientação diante da vida, do ser, do outro, e, mormente, diante da formação social de que faz parte.
A hermenêutica, na linha de Gadamer, traduz a relação de ser-em-situação no conceito de pertencimento à tradição. A tradição se revela como uma comunidade histórica de preconceitos, que sedimenta uma estrutura pré-temática que norteia o modo de pensar e agir humano.
A tradição histórica, então, enquanto horizonte, oriundo do passado, que condiciona o viver social. O pertencimento à tradição leva à ideia de pré-compreensão na medida mesma em que nenhum entendimento se produz sem pressuposições, sem visão prévia.
Afirma Gadamer:
“Desse modo, o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica tem de partir do fato de quem quer compreender um texto está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição.”[1]
Nenhuma tradição é unívoca ao ponto de impor, monoliticamente, os sentidos aos que interpretam. Todo texto, independentemente da tradição a que está adstrito, abre um campo aberto, onde há espaço de decisão, embora limitado ao quadro de equivalências. Parafraseando Carnelutti, decidir é decidir-se. Na hermenêutica moderna, decidir-se na compreensão das recepções adstritas ao quadro analógico do texto.[2]
A sociologia, por sua vez, também enfatizou o ser-em-situação, mas numa perspectiva diversa, apresentando vários vetores:
- o modo-de-produção, isto é, a maneira com que se organizam os fatores de produção;
- a divisão de classes e seu reflexo no lugar de produção e de poder que as pessoas ocupam;
- a grave questão das organizações administrativas, públicas e privadas;
- as formas de distinção social, relativas ao acesso a bens materiais e simbólicos;
- os valores que se projetam pelos meios de comunicação;
- os horizontes teóricos que se espargem pelos aparelhos ideológicos;
Para Guerreiro Ramos, todas essas questões esbarram no tema das organizações. Afirma o fundador da sociologia crítica:
“Organização é aspecto da vida social e individual cuja relevância só recentemente vem sendo assinalada. No entanto, dificilmente se compreende o essencial da vida coletiva, caso se descure do seu aspecto organizacional. A organização é o segredo da servidão humana. É para os seres humanos o que a espécie é para os animais inferiores. Uniformiza as condutas, subordinando-as mecânica e dogmaticamente, reduz e anula até a liberdade. A descoberta e o estudos dos efeitos da organização sobre a vida humana estão destinados a ter importância idêntica à que tem conhecimento sistemático do inconsciente. A compreensão do inconsciente caracteriza a conduta superior. Do mesmo modo, a compreensão da organização libera a existência humana de grande parte de suas servidões.’’[3]
No caso do direito, dois enclaves são fundamentais: 1) a função do ensino jurídico; 2) o modo com que se realiza a prática jurídica;
O ensino jurídico, hoje, corre dois riscos: o da superficialidade e do comércio de mistérios que ofusca e sobrepuja o necessário estudo das categorias teóricas e práticas do direito, filosoficamente fundadas. Na verdade, são complementares na medida em que, para fugir, ilusoriamente, da superficialidade, criam-se círculos com fumos de intelectualidade, mas desprovidos do mínimo de rigor lógico, com enunciados que não conseguem articular o menor significado.
Relevante a questão da relação sujeito e objeto, a qual é de grande atualidade e merece interpretação correta não em termos de superação, mas de inserção adequada do tema (enjeu).
Escreve Emerich Coreth:
“Aqui se patenteia um estreito entrelaçamento de sujeito e objeto. De fato, o sujeito só é este sujeito concreto enquanto codeterminado pelo mundo de seus objetos; porém, só é este objeto concreto na medida em que se abre pelo modo de ver, questionamento e apreensão de sentido por parte do sujeito.”[4]
Nem o sujeito nem o objeto, em sendo originários das condições históricas e das condições sociais, são determinados abstratamente. Sobre o sujeito e na construção do objeto pesam não apenas as determinações do passado, mas o modo do influxo das organizações na relação com o tempo e o espaço, a construção do sentido e, mormente, o modo que as objetivações da individualidade, em seus fluxos e enclaves, são forjadas no âmbito social-histórico presente.
Afirma Karl Marx:
“A perspectiva da doutrina materialista, na qual os homens são produtos das circunstâncias e da educação e, por corolário, são produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o educador mesmo precisa ser educado. É porque tende a dividir a sociedade em duas partes em que uma se sobreleva a outra (por exemplo, em Robert Owen).
A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana não podem ser compreendida racionalmente senão enquanto prática revolucionária.” [5]
As organizações são frutos da interação humana, voltada a produzir e alcançar os objetivos socialmente estabelecidos, mas, desenraizando-se das origens históricas, assumem feições heterônomas, impondo-se sobre as subjetividades.
No contexto do que denominamos sociedades fraturadas com conurbações transcendentes[6], em que não há tradição, as instituições coisificam-se em interesses de círculos e clãs e não são responsivas ao interesse coletivo, à vontade geral, e à eficácia da constituição.
As organizações públicas e privadas, na Antiguidade Clássica, eram projeção da Estadística, a qual estava vinculada, filosófica e politicamente, à agrimensura do espaço e à construção da política e da economia.
No Brasil, em que a Constituição, embora projete um estado de coisa, no sentido latino do termo, marcado pela produção e a criação artística, esbarra na ausência de Estadística, as conurbações transcendentes vivem parasitariamente da dívida pública, que compromete o futuro. Temos constituição, mas não temos Estadística[7]. Na América Latina, é tarefa primeva reinventar a Estadística.
Nesse contexto, as categorias centrais da história cultural da ciência jurídica e da hermenêutica filosófica e jurídica não são difundidas a contexto e de maneira aprofundada. O descortinar dos conceitos, no âmbito jurídico, abre frestas para que o trabalho dos juristas, teóricos e práticos, seja a cognição consciente do ordenamento e não a idiossincracia subjetiva dos sujeitos. [8]
A tarefa do saber jurídico é ambiguamente estipulada: de um lado, reproduz estereótipos que dificultam a compreensão do texto; de outro, em sendo criativo, pode abrir o horizonte em que a interpretação e aplicação do direito, na cognição adequada dos textos, façam valer o direito enquanto formação dos liames societários e os sentidos projetados pela comunidade política, detentora do poder de normatizar de maneira geral e abstrata.[9]
A participação, em Platão, é conferir sentido concreto e particular ao que se apresenta de forma universal. Na lógica jurídica, conferir concretude individual àquilo que, abstratamente, mediante predicados inseridos na hipótese normativa, vem previamente estabelecidos. Enfim, a difícil arte de interpretar e aplicar ao direito e preservar os sentidos coletivos. Interpretar e aplicar são, portanto, atitudes parentéticas, isto é, a elevação à consciência dos dados da realidade e o alcance de uma objetivação clara do que se apresenta como obra ou texto, engajando e ultrapassando a si. O jurista seria a comunidade em concreto. O espírito objetivo. Para citar Rudolf Stammler, o jurista como aquele que forja, na arte viva da exegese, o que a comunidade quer unificar.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, pág. 442.
[2] Sobre o tema ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024. No texto, inserimos de maneira originária, no campo do direito, a estética da recepção. A relação direito e literatura deve ser intrínseca e não extrínseca na forma trivial com que acontece no Brasil. Quando Dworkin aventava a hipótese estética, claramente, referia ao fato de que, na literatura, há mais teorias interpretativas do que no direito.
[3] RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963, pág. 147.
[4] CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêuticas. São Paulo: EPUL, 1973, pág. 100.
[5] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Études philosophiques. Paris: Editions sociales, 1951, pág. 62, tese III. Na edição da Ideologia Alemã, consta o texto de Friedrich Engels em que analisa o conceito de graça teológica em Feuerbach, onde está a gênese do existencialismo secularizado e a ideia de que a existência só se realiza pela unidade com o ser na graça.
[6] Sobre o desenvolvimento do conceito, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Marxismo, Arqui-Espaço, Agrimensuras Críticas. Curitiba: CRV, 2024. Ver também o artigo publicado na Revista Empório do Direito sobre a violação sistemática do art. 37, inc. II, CRFB, e as consequências para a estrutura societária do trabalho e das organizações, num exemplo patente da inexistência de Estadística: https://emporiododireito.com.br/leitura/das-formas-de-assuncao-a-cargos-publicos-na-constituicao-de-1988. No tempo em que se esboçava, no Brasil, a Estadística, Guerreiro Ramos, afirmava que ‘’só uma situação econômica segura pode subtrair os funcionários a um servilismo obrigatório em relação aos dirigentes”. Ficam claras as razões do caos administrativo a que estamos submetidos.
[7] A ausência de Estadística mergulha as formações sociais no caos e na indeterminação, no vórtice em que os talentos possam naufragar e não se constituir a possibilidade do saber libertário. É um círculo vicioso que as nações do centro estimulam e fomentam.
[8] Um dos temas que emerge da biologia moderna é o do surgimento da consciência e da cognição como processo vital da existência em geral.
[9] Karl Marx, em bosquejo do texto ‘’Teses sobre Feuerbach’’, escreve: “No direito moderno, os burgueses são forçados a dar à lei uma expressão geral”. Alain Badiou diz que o livro a República tem sido, para ele, uma obsessão. No meu caso, marxista ortodoxo, as Teses sobre Feuerbach tem sido uma espécie de Gestalt, de algo que prepara e anuncia e produz. Não é à-toa que tenho, até então, uma centena de páginas sobre o livro de 2 páginas.