Arquivos diários: 29 de janeiro de 2025

A APLICAÇÃO DA LÓGICA AO CAMPO JURÍDICO

“A teoria pura é uma teoria do direito positivo.” Hans Kelsen

Hans Kelsen pretendia conferir autenticidade à ciência jurídica, conferindo-lhe autonomia de maneira que, no campo instituído, prevalecesse os critérios científicos internos e não a invocação de enunciados advindos de outros campos do conhecimento.

Pretende, ao excluir enunciados de outras áreas, erigir um saber próprio e especializado, voltado, precipuamente, à compreensão do objeto da ciência jurídica. Portanto, aqui emerge um dualismo, não entrevisto na inteireza, entre a ciência jurídica- conjunto de enunciado, e o objeto jurídico- a ordem jurídica positiva.

À ciência jurídica cabe estudar o direito válido em determinado tempo e espaço. Kelsen estabelece um conjunto de demarcações: separa a ciência jurídica do jusnaturalismo, da política do direito; enfatiza a diferenças entre questões morais e questões jurídicas.  As questões alinhadas não se confundem com metalinguagem ou a busca pela pureza abstrata da ciência jurídica, mas de estabelecer adequadamente o objeto da ciência jurídica.

Afirma Kelsen:

“A realidade jurídica, a existência específica do Direito, manifesta-se num fenômeno designado como positividade do direito. O objeto específico de uma ciência jurídica é o Direito positivo ou real, em contraposição a um Direito ideal, objetivo da política.[1]” 

Nesse entrocamento, a questão da definição do objeto da ciência jurídica, qual seja do direito positivo, sobrepaira crucial. Trata-se de uma questão complexa, pois, a constituição de uma ciência, qualquer que seja, demanda a existência de um objeto que lhe seja próprio.

Carlos Cossio leciona:

“A Teoria pura do direito não se refere, pois, diretamente ao direito, senão à ciência do direito; dizendo de outra maneira, a teoria pura se refere ao direito enquanto este é objeto de conhecimento científico[2]’’

O enunciado foi objeto de desinterpretação, para usar um termo do próprio Cossio, na medida em que se atribui à teoria pura do direito um sentido de metalinguagem. Na verdade, a teoria pura não é metalinguagem, pois, entre a ciência jurídica e a ordem jurídica não há homologia linguística. Trata-se de um erro primário, propagado como novidade epistemológica.

Leciona Lourival Vilanova:

“Falar sobre o Direito como sistema importa numa colocação em nível de metassistema. Em nível da linguagem do direito positivo não é possível: o Direito não usa a linguagem para falar sobre ele mesmo, como linguagem. Se o fizesse, poria sua linguagem como objeto mencionado, acerca do qual discorria. Seria um discurso sobre o discurso, um discurso de nível superior ao discurso-objeto.”[3]

Não há homologia entre a linguagem do direito positivo, de natureza diretiva, e a linguagem descritiva, com pretensão científica. Entre a descrição enunciativa e o discurso-objeto há diferenças de natureza linguística: a ciência jurídica descreve as normas jurídicas, isto é, o objeto que lhe é próprio.

Embora a teoria pura do direito seja ciência jurídica, a sua constituição remete não a si mesma, mas, necessariamente, ao objeto que lhe é pertinente. Para Kelsen, a teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo. Direito positivo é o direito válido numa comunidade política, isto é, o conjunto de normas criadas e produzidas pelos órgãos de produção e aplicação do direito.

A remissão à comunidade política correlaciona-se ao problema da unidade e da fundação da positividade. Não há que confundir positivismo e positividade. Positivismo é postura epistemológica que limita a ciência jurídica ao estudo do direito válido sem importações de critérios de outros campos do conhecimento. Positividade é a própria ordem jurídica enquanto manifestação política da comunidade.[4]

Kelsen estabelece inúmeras linhas de demarcação e, ao mesmo tempo, não deixa de debater aquilo que afasta do campo jurídico. Leciona:

“Abstrair da validade toda e qualquer norma de justiça, tanto da validade daquela que está em contradição com uma norma jurídica positiva como daquela que está em harmonia com uma norma jurídica positiva, ou seja, admitir que a validade de uma norma do direito positivo independe da validade de uma norma de justiça – o que significa que as duas normas não são consideradas como simultaneamente válidas- é justamente o princípio do positivismo jurídico’’[5]

A validade, então, é interna ao direito na medida em que o direito regula sua própria produção. A teoria autopoiética no sentido de que o direito cria a si mesmo numa circularidade autorreeflexiva já está em Kelsen.

A validade, pois, revela-se como critério que molda a autorreferência da ordem jurídica[6]. Demarca onde termina a política e onde inicia a ordem jurídica. A justiça, para Kelsen, não é tema irrelevante, mas, não integrando o âmbito da ciência jurídica, é objeto da teoria política do direito.

Na lição imarcescível de Lourival Vilanova:

“A validade é propriedade da forma lógica de relacionar, independente do conteúdo gramatical e conceptual das proposições constituintes. A validade independe da correção gramatical e da verdade empírica: há próprio da forma lógica’’ [7]

O objeto da ciência jurídica é a ordem jurídica positiva. Para apreensão da natureza do direito positivo, a dicotomia dever ser e ser é axial. Embora tenha afirmado que é um dado imediato da consciência, Kelsen explorou corretamente a dicotomia, a qual instaura um conjunto de corolários teoréticos[8].

Assertoa Kelsen:

“Ora, o conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo ‘norma’ se quer significa que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem.” [9]

As normas jurídicas, enquanto manifestação do dever ser, são, portanto, atos de vontade. Integram a esfera humana do agir político-normativo. Inseridas no âmbito do deve ser, às normas jurídicas não se atribuem o predicado da verdade e da falsidade, mas sim da validade ou não validade. As normas em si não são verdadeiras nem falsas, mas valem ou não valem. A lógica formal tem incidência somente no campo da ciência jurídica cujos enunciados podem ser qualificados de verdadeiros ou falsos.

A lógica formal se aplicaria aos enunciados descritivos do direito e, na medida em que os enunciados descritivos da ciência jurídica se referem às normas jurídicas, linguagem prescritiva, de maneira indireta, a lógica incidiria no campo normativo do direito. O princípio da não-contradição incidiria diretamente no campo da ciência e, indiretamente, no campo da ordem jurídica: dois enunciados diferentes sobre a mesma norma, então, seriam contraditórios. É a posição de Kelsen[10].

De outro lado, Lourival Vilanova diferencia o sistema jurídico como sistema empírico e acaba admitindo a possibilidade de normas contraditórias e pertencentes ao mesmo sistema. Afirma:

“Assim sendo, nem a lei de não-contradição garante a consistência dos sistemas jurídicos positivos, nem a lei-de-terceiro-excluso garante a completude dos mesmos. É que os sistemas jurídicos são sistemas empíricos de normas de conduta, não sistemas de proposições cognoscentes da realidade. Resta tão-só a unidade, que é conferida pelo comum fundamento-validade de todas as normas.” [11]

Inserto nesse diálogo entre gigantes, inserimos um enclave teórico ao afirmar que o sistema jurídico não é um dado, pronto e acabado, mas um sistema de significados à espera de formalização no momento de interpretação e aplicação do direito, muito embora o quadro analógico exista na condição de base intransponível e incontornável.[12] 

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 1988, prefácio.

[2] COSSIO, Carlos. La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944, p. 170.

[3] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses. 3. ed. 2005, p. 157-8.

[4] Para Kelsen, normativismo e positivismo são sinônimos.

[5] KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 11.

[6] Sobre a importância da validade não apenas como critério epistemológico, mas também como categoria topográfica demarcadora do que é jurídico e do que não é jurídico, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, p. 66 a 70.

[7] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses. 3. ed. 2005, p. 46.

[8] Sobre um dos corolários da dicotomia ser e dever ser, ver : NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020, p. 34-5.

[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p. 5.

[10] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p. 228 a 232.

[11] Ob. Cit. P. 284.

[12] Ver:NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, p. 65 a 86.