Arquivos diários: 25 de janeiro de 2025
SOBRE O TEMA DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
A Pontes de Miranda, jurista maior
O diálogo tenso entre Carlos Cossio e Hans Kelsen deixou muitas questões jurídicas, filosóficas ou dogmáticas, em aberto, especialmente, pela natureza de um embate que, segundo um dos protagonistas, era geométrico.
Do balanço que podemos empreender avulta axial a importância do tema do conceito do direito e as inflexões no plano das categorias centrais da dogmática jurídica.
Carlos Cossio vislumbra o direito como liberdade fenomenológica, vida plenária, vida objetivada e vida vivente, e, articulando uma redução eidética, afirma o engendramento, nesse contexto, de obrigações, faculdades, ilícitos e sanções.[1] É dentro desse horizonte teórico que denominamos nossa teoria de teoria protonormativa do direito na medida em que cabe ao direito, constituído ou legislado, estabelecer, originariamente, os liames e o vínculos que imantam as relações jurídico-sociais.
Seguindo Andrés Ortiz-Osés, na metafísica aristotélica, protofilosofia significa a filosofia primeira em que se imbricam o sensível e o inteligível. No caso do direito assiste razão à Cossio ao defender que a essência da vida humana é a liberdade. A constituição, portanto, na teoria protonormativa da constituição existe, primária e primacialmente, para definir e erigir as liberdades democráticas, desde à assunção da nacionalidade à cidadania, seja do sufrágio, universal e igualitários, seja dos direitos e garantias fundamentais.
A protonormatividade da constituição tem vários efeitos e regula o conteúdo da estrutura jurídica de maneira que a legislação ulterior não pode vulnerar ou diminuir a abrangência das liberdades democráticas. Há, portanto, uma hierarquia interna que se verifica, no âmbito constitucional, na distinção entre lei complementar e lei ordinária. Os conteúdos contrários, especialmente, ao regime de liberdades democráticas, direitos e garantias fundamentais, devem ser expurgados mediante os mais variados mecanismos disponíveis à sociedade e ao estado.
Afirma José Afonso da Silva:
“Mas a constituição rígida, por seu caráter fundamentalmente sintético, não pode descer a pormenores, a assuntos tidos como de menor relevo, ou que devem constituir apenas desdobramentos de normas e princípios constitucionais. Não pode, nem deve, regular todos os assuntos, todas as instituições; por isso, deixa muitos deles às leis ordinárias, ou complementares’’[2]
O excerto merece inúmeras considerações críticas consoante aos axiomas e aos postulados da teoria protonormativa da constituição. Olvidando o instigante tema da lacuna do direito que embebe o direito numa concepção protonormativa, salientamos que a primazia da constituição não decorre da rigidez constitucional, mas deflui do primado das liberdades constitucionais na medida em que a existência humana e o direito, para citar Carlos Cossio, supõem a liberdade, ou, na linguagem dialética, a vontade livre.
O próprio Kelsen, nas antinomias que informam sua teoria, defende a constituição como norma de fundo e , portanto, acaba defendendo, ao contrário do que se diz, uma teoria material da Constituição.[3]
Outrossim, determinadas constituições, incluída a atual constituição, deferem à lei complementar as matérias mais importantes da constituição do estado e da sociedade, tendo preeminência sobre a legislação ordinária, que, via de regra, se reservam matérias menos importantes.
A legalidade emerge enquanto uma meta-regra inerente à separação dos poderes e que conforma o atuar estatal e da sociedade quando no exercício do poder normativo, incluídos os atos administrativos, de quaisquer poderes, já que se rechaça a doutrina italiana dos atos administrativos, no ato de regular e conferir especificidade à constituição e à lei.
Durante muito tempo, o debate constitucional emaranhou-se, embora em termos mais precários, na questão do dever-ser e do ser e num conjunto de classificações sobre as normas que emergiram. Na tradição norte-americana, as normas constitucionais passaram a ser divididas em normas auto-aplicáveis (já executáveis) e normas não auto-aplicáveis (não executáveis).
Dentro das categorias emergentes na dogmática jurídica, ressaltam-se: existência, vigência, eficácia, incidência. O termo aplicação da norma é mais complexo porque envolve a mediação institucional e social. Portanto, afirmamos que a doutrina norte-americana padece de fragilidade teórica uma vez que a toda norma em si depende de um conjunto de procedimentos, sociais ou orgânicos, para ser considerada aplicada. Por exemplo, na tradição realista do direito, vigência tem a ver com direito aplicado nos tribunais e não o cristalizado nos códigos. A aplicação da norma não se confunde com a norma em si, já enfatizava Carlos Cossio[4].
No Brasil, passou-se a usar uma junção entre o termo eficácia e aplicabilidade. José Afonso da Silva, em livro propalado, defende a seguinte classificação: a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral; b) normas de eficácia contida e aplicabilidade direta, imediata, mas não integral e c) normas de eficácia limitada ou reduzida, programáticas ou de legislação. Alguns autores inserem, no âmbito das normas de eficácia limitada, as normas de natureza programáticas ou de princípio institutivo.
O Professor paulista assim define as normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta:
“normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto.” [5]
Já as normas de eficácia contida, incidem imediatamente, mas se preveem mecanismo de manter, segundo o autor, a eficácia contida em certos limites.
As normas de eficácia limitada, programáticas ou de legislação, são aquelas cuja executoriedade depende de legislação posterior.
No âmbito da ciência dogmática do direito, distingue-se validade e eficácia. Para Kelsen, a validade é a existência específica da norma e a eficácia o fato de a norma ser obedecida. Nas antinomias que imbuíram a teoria pura, embora tenha, inicialmente, rechaçado a categoria da eficácia, porque inserida no plano do ser e não do dever ser, assim desdobrou seu pensamento:
“Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que- costuma dizer-se- não é eficaz em uma certa medida, não será considerada norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é a condição de vigência. No entanto, deve existir a possibilidade de uma conduta em desarmonia com a norma”[6]
A nosso ver, o tema da eficácia tem correlação com o tema das condições de aplicação de norma que extrapolam a dimensão de validade e contornam o tema dos mecanismos de mediação, sociais ou institucionais, necessários à concretização da ordem jurídica.
A própria noção de sanção mergulha na ambiguidade assinalada na medida em que é previsão hipotética e realização procedimental. A ambiguidade aqui exposta revela que, na falta de mecanismos idôneos de mediação, a própria normatividade se esgarça e o direito deixa de ser garantia.
Em obra recente, assinalamos, lembrando a noção crucial de componente hermenêutico, da lavra do saudoso amigo Nelson Saldanha:
“A visão sociomórfica do direito, ao confundir prescrição e ciência, oculta as questões que se revelam centrais: 1) o direito prescrito para se realizar, escorreitamente, necessita ser formalizado, isto é, necessita de uma ciência e de uma técnica; 2) que não existe ordem em si, já plenamente desenvolvida, incidindo imediatamente e conformando, automaticamente, a realidade social. Há, conforme desvelou originariamente Nelson Saldanha, o componente hermenêutico. Ou seja: a norma traz em seu germe vários sentidos, configurando-se não como dado estanque e consumado, mas como campo hermenêutico. Nesse sentido, considerando a origem da hermenêutica, a ordem é um campo aberto, mas limitado, onde acontece os conflitos de interpretação.” [7]
Nesse sentido, o tema da aplicação, na linha que desenvolvemos, é tema que interessa, concomitantemente, à ciência jurídica e à teoria política do direito na medida em que o direito deve ter, para citar Stucka, objeto, isto é, referibilidade sociológica, mas que não serve para a classificação das normas constitucionais.
Invocando Pontes de Miranda ao distinguir entre a incidência e o atendimento da norma[8]. A norma sempre incide; já o atendimento depende do grau de civilização do país.
Em maneira embrionária e lacônica, podemos classificar as normas constitucionais em normas de incidência atual, quando o âmbito de validade e o objeto da norma já estão constituídos e normas constitucionais de incidência futura, na medida em que dependem de atos normativos gerais e abstratos ou atos normativos de natureza político-social.
Na verdade, os exemplos de normas de eficácia contida são exemplos em que ainda não se constitui o objeto da norma e que não é a eficácia que se contém, mas o objeto que não se constitui. A normas de incidência futura dependem, portanto, da concretude da separação dos poderes e da capacidade político-econômica em realizar os objetivos abstratos da constituição.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] COSSIO, Carlos. La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944.
[2] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 42.
[3] Luigi Ferrajoli, leitor assíduo de preleções dos clássicos jurídicos, usa incorretamente o termo aporia. Na minha terminologia, haurida em Kant, uso o termo antinomia para referir aos dualismos de Kelsen.
[4] Ver Obra Citada.
[5] Ver Obra Citada, página 82.
[6] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p.12.
[7] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, p. 37.
[8] MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado: Parte Geral, Tomo I, Introdução: pessoas jurídicas e jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1970, especialmente o capítulo A regra jurídica e o suporte fático.