Arquivos diários: 8 de janeiro de 2023

DOS LIMITES E DAS POSSIBILIDADES DA CUSTÓDIA CAUTELAR

“É dever da cidadania recusar o cumprimento de ordem judicial manifestamente ilegal”

É preciso suplantar o estereótipo, reforçado pela dogmática jurídica acrítica, de que o processo cautelar tem por objeto o resultado útil de outro processo. Na verdade, o objeto do processo cautelar circunscreve-se à tutela de uma situação cautelanda, a qual tem realidade em si, objetivamente considerada, enquanto direito, e não em relação ao resultado de outro processo.

No caso do processo penal, avulta de importância a necessidade de fazer esse giro. Na medida em que o foco se dirige à situação cautelanda, encontram-se critérios mais objetivos para assegurar que a custódia cautelar possa acontecer nos marcos rígidos da democracia. É incompatível com a democracia a custódia cautelar erigida como forma de antecipação de pena.

A cominação concreta de uma pena exige um processo penal arrimado no contraditório com amplas possibilidades probatórias culminando no título executivo adensado na sentença penal transitada em julgado. Por isso, é preciso cingir de garantias indeclináveis a custódia cautelar para que a legalidade e a tipicidade sejam respeitadas em todos as lindes do direito. Afirme-se de forma clara: a custódia cautelar não se confunde com a forma insidiosa e abusiva de antecipação de pena.

Não é apenas no direito penal material que a tipicidade se expressa. Na medida em que o processo constitui um conjunto formalizado previamente, as medidas cautelares devem se revestir de tipicidade. Não existe poder geral de cautela no processo penal. Ou há medidas típicas ou não há.

O giro proposto aqui, de forma absolutamente original, exige novos requisitos para a custódia cautelar, quais sejam:

  1. juízo de tipicidade seguro e consistente de que o fato, atual e concreto, se enquadra nos predicados constantes do tipo penal. Não há falar em fumaça de cometimento de delito. Há de haver um juízo de tipicidade seguro de que uma conduta punível aconteceu. Nesse sentido, a decisão precisa detalhar de forma clara e consistente que se estriba num juízo de tipicidade consistente. Inúmeras consequências decorrem dessa premissa: a conduta deve ser atual e concreta. O direito sempre se reporta a uma dada situação.

  Anota Lourival Vilanona:

 “(…) o domínio das normas é linguagem não formalizada, não algoritmizada, com referências semânticas a situações objetivas na realidade social da conduta ( As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo)

 Assim, ilações despidas do mínimo de substrato fático não têm idoneidade para justificar a privação do maior dos direitos: a liberdade. Não podemos incorrer numa prática escatológica e cheia de previsões funestas.

2) como no processo a cautelaridade se desdobra em várias possibilidades, desde a prisão até outras medidas, há que verificar a proporcionalidade, no sentido da lógica do razoável de Recasens Siches e de Aristóteles, da prisão preventiva. Há proporcionalidade, quando, em cotejo com as outras medidas cautelares disponíveis, a única forma viável de acautelar a situação seja a prisão. Havendo outra medida menos gravosa aos direitos fundamentais e idônea a produzir os efeitos preordenados de tutela da situação cautelanda, a prisão preventiva revela-se abusiva e configura o crime de abuso de poder.

As legislações hodiernas, com pequenas variações, tem estipulado a prisão preventiva para os casos de lesão: 1)  à ordem pública, 2) à ordem econômica, 3) à conveniência da instrução criminal e 4) assegurar a aplicação da lei penal.

No que concerne à ordem pública, a dogmática vinculada à filosofia da linguagem ordinária- Hart- tem enfatizado que a linguagem jurídica haure seus atributos na linguagem natural, a saber: vagueza e ambigüidade. Um termo é vago quando não é possível precisar seus limites precisos (extensão indefinida)? É ambíguo um termo que apresenta diversos sentidos em contexto diferentes.

As observações de Hayakawa coincidem com as declarações acima ao declinar que os termos possuem um significado extensional (aquilo que ele indica, a classe que o termo denota) e um significado intensional (aquilo que nos é sugerido (conotado) na nossa cabeça).

O termo ordem pública, fora dos eixos comunitários da linguagem, constitui um exemplo de termo que ostenta um significado intensional, apresentando textura aberta e indefinida de forma que qualquer situação, mesmo fora do alcance da normatividade, pode ser facilmente enquadrada nos seus lindes.

Engendram-se tormentosas dificuldades para definir tais termos. Por isso, os grandes pesquisadores da interpretação/aplicação do direito (salientamos o nome de Luis Alberto Warat) revelam que urge estabelecer, para dirimir o problema, critérios de decidibilidade, isto é, critérios semiológicos que irão orientar a definição mais adequada possível. Assim, a ordem pública só pode ser invocada para proteger um valor albergado na Constituição e não para obliterar/ofuscar as garantias que a informa.

Pensamos que a semiologia jurídica de Luis Alberto Warat, ainda herdeira das vacilações de Herbert Hart, apesar das inestimáveis contribuições, apresenta um sentido mais iconoclasta do que perscrutador da necessidade de limitar o poder estatal.

Analisando a aplicação do direito, sob o signo ordem pública agasalham-se os mais variados significados: 1) salvaguardar a credibilidade das instituições; 2) o modo de execução da conduta punível; 3) a pena cominada em abstrato atribuída ao fato punível; 4) possibilidade de reiteração criminosa.

Num Estado democrático, o ser humano na concepção de Kant não pode ser reduzido à condição de res (coisa), emergindo como fim em si mesmo, como centro de valor que fundamenta e irradia a ordem jurídica. Vedado está o uso promocional do ser humano, não se justificando a constrição da liberdade para garantir a credibilidade das instituições.

Analisar, concretamente, o modo de execução para aferir a culpabilidade já constitui exame de mérito e, portanto, forma oblíqua de antecipação de penal.

Quanto a considerar a pena abstratamente cominada, trata-se de questão de política criminal, referente ao momento nomogénetico, que expunge qualquer possibilidade de aferição em momento prévio à avaliação judicial jungida ao contraditório. É um critério avaliativo inerente à atividade legislativa e não poder servir de vetor para a constrição da liberdade em caso de custódia cautelar.

Na verdade, as instituições devem desenvolver os processos penais de maneira a seguir os procedimentos formais estabelecidos previamente e, somente, após à aferição em contraditório, punir. Usar uma deficiência de gestão da justiça para promover, à custa das liberdades constitucionais, indevidamente, a imagem da justiça constitui perversão da democracia a ser combatida. A credibilidade das instituições depende da produção adequada dos sentidos jurídicos possíveis. Não se defende a impunidade, mas se critica uma forma enviesada de atuação estatal que, na ausência de processos articulados no contraditório e na ampla possibilidade probatória, no marco de uma temporalidade razoável, busca produzir efeitos simbólicos de legitimidade mediante a punição desgarrada de bitolas legais.

Portanto, somente no caso em que há possibilidade concreta de reiteração criminosa, concretamente considerada, é que se justificaria a custódia cautelar sob o signo da ordem pública. Todas as demais hipóteses são casos evidentes de apropriação privada da linguagem, isto é, usurpação do sentido legiferante do termo.

A ordem econômica, de acordo com a hermenêutica jurídica analógica, constitui o conjunto de normas que regulam a produção e a circulação de bens e serviços bem como o regramento das competências e da competição. Conforme salientou a criminologia crítica, as classes dominantes delinquem; não obstante, em razão da suspensão colonial do direito, estão protegidas sob a forma de acordos implícitos.

O ataque à ordem econômica produz graves males sociais e deve ser objeto de consideração numa ordem democrática em que a igualdade perante a lei é regra motriz.

Não há exemplo, na jurisprudência atual, de prisão preventiva no caso de lesão à ordem econômica, demonstrando-se o caráter seletivo do processo penal que, mediante as agências estatais, convertem apenas parcela da população em criminosos. É ingênua a visão de que criminoso é aquele que viola a lei penal. A experiência mostra que criminoso é aquele que as agências estatais produzem como criminosos mesmos nos casos de vulneração das garantias constitucionais.

Quanto á conveniência da instrução criminal,  volta-se à proteção da produção adequada das provas e da lisura do próprio processo.  Nesse contexto, cabe à custódia cautelar quando há possibilidade de fraude processual. Inclusive, a legislação hodierna ampliou o tipo de fraude processual para abarcar a orquestração maquinada para operar a normatização apócrifa dos fatos.

No que tange a assegurar da aplicação da lei penal, a doutrina, sob essa hipótese, considera a possibilidade de risco de fuga. Temos que, na inteligência sistemática das medidas cautelares, o risco de fuga pode ser neutralizado por outras medidas que não a prisão e, apenas e tão-somente, após o descumprimento dessas medidas é que a prisão preventiva torna-se possível.  Nesse contexto, cabe a custódia cautelar quando se violam, de forma habitual, as medidas cautelares voltadas à proteção do comparecimento à justiça.

Por isso, dentro da lógica do razoável de Recasens Siches, havendo medidas outras que podem acautelar a situação de forma a ponderar os valores em jogo, salvaguardando-se o interesse geral sem o sacrifício dos direitos fundamentais do indivíduo, a prisão preventiva configura verdadeiro crime de abuso de poder a ser debelado imediatamente pelas vias adequadas.

A prisão preventiva não pode se converter, como sói ocorre na América Latina, instrumento de persecução penal dos pobres e forma de controle das populações. É hora de defender a legalidade e a tipicidade processual para evitar que o direito penal seja instrumento de encarceramento dos pobres e da neutralização do potencial político de uma nação.

Deve-se lembrar sempre, na lição fantástica de Carlos Cossio, que o fundamento ontológico de todo ordenamento é a liberdade.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.

CARTA À JUVENTUDE BRASILEIRA

“Quando tu verás na tua terra um Dostoiévski, um George Eliot, um Tolstoi- gigantes destes, em que a força de visão, o ilimitado da criação, não cedem à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dor daquelas gentes donde às vezes não vieram – quando?”(Lima Barreto)

Gramsci- o filósofo por excelência, no enfrentamento com o poder instituído- era uma pensador da totalidade cuja obra ainda está por revelar, dizia que é importante perguntar o que motiva uma formação social: se são interesses alheios ou se há uma motivação genuinamente nacional, aberta às diferenças.

No caso do Brasil, há pensamento nacional, mas falta um bloco de poder com pujança para articular as classes dominadas para a tomada do poder.

Hoje, temos uma cena deprimente em que poderes autorreferentes se deparam com um grande vazio. Não representam mais o Brasil das novas gerações: representam os interesses dos imperialismos e, portanto, atuam contra o próprio povo. Não têm força nem soberania para defender o povo brasileiro e entram numa das mais graves crises de legitimidade. E é irremediável no marco institucional vigente.

Há dois Brasil em conflito: um, colonial, violento e totalitário, cujas raízes remontam a 1492; outro, profundo, consistente e capaz de articular soluções nacionais.

A juventude brasileira não deve alimentar ilusões: o Brasil colonial só se mantém se reprimir o Brasil que vem no encalço de Lima Barreto, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond, Castro Alves, Alberto Guerreiro Ramos, João Gilberto, Jamelão, Zé Keti. É um Brasil inteirado das questões e engajado na constituição da solidariedade. E , por isso, vai na contramão de uma extensão cada vez mais abusiva do modal deôntico proibido expresso, sobremodo, na delação premiada que agora atinge níveis capilares e as instituições públicas. É um mecanismo claro para coarctar as possibilidades críticas nas novas gerações. Não nos enganemos, a formação social brasileira atual é totalitária, invía à crítica e repressora de qualquer questionamento problematizador das engrenagens coloniais de poder. Já há elementos robustos de que o Estado Brasileiro trata intelectuais orgânicos como inimigo.

Nessa disjunção profunda, cabe à juventude brasileira não fazer qualquer concessão às formas normalizadas da colonialidade do poder, mas perserverar na afirmação incondicional do novo que brota gradativamente. A filosofia mundial já resolveu, em linhas gerais, a grave questão da pragmática econômica, cabe agora conquistar a autonomia política para, vencendo os jogos de soma zero- Alain Badiou- empreender as reformas econômicas produtoras da igualdade.

Sem ilusões e com pensamento estratégico, podemos alcançar a nossa auto-determinação nos moldes da libertação!

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.