Arquivos diários: 5 de novembro de 2022
Sobre o centenário de João Cabral de Melo Neto
No prelúdio da discussão sobre o conceito de natureza em Schelling, Hegel afirma: ”mas as pedras clamam e se suprassumem no espírito”
Neste interstício entre o inorgânico e o orgânico, o aspérrimo mistério da vida a desafiar a atenção aguda dos filósofos, dos poetas e dos cientistas.
A poesia de Cabral é uma inspeção meticulosa, difícil, bruta e afirmativa do clamor das pedras. A pedra não como metáfora da imobilidade, mas da maleabilidade das formas com que a vida em seus meandros e em seus enclaves complexos se materializa. A lição de pedra que resiste ao fluir, mas, ao fluir, a ser maleada.
O recurso à pedra não é um sucumbir ao imediato, mas uma forma de evitar a dispersão das representações vazias em que incorrem com muita facilidade a poesia sofrível de éter, nácar e nenúfar. Contra esta loucura que obsidia a poesia, João Cabral busca elementos nas experiências do enfrentamento com o inóspito, com as situações fronteiriças e, num combate espiritual à guisa de Rimbaud, a afirmação incondicional da vida. A poesia de João Cabral é repassada de um vitalismo. Não o vitalismo biológico de Deleuze nem o vitalismo matemático de Badiou. É um vitalismo periférico, da hulha e do betume, vitalismo a contra-pelo, contra o sol quando cresta demasiado, contra a queda.
O último Heidegger cedeu à possibilidade, que julgava inconveniente, de aproximar o pensamento e a poesia, colocando o poeta como o guardião do aberto. Não é fácil ser o guardião do aberto, pois, implica a assunção do risco. O aberto é o risco, mas, além e aquém da promessa, é o lugar da vida. No aberto, é preciso a força do cante a palo seco:
“O cante a palo seco
é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um canto que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia”
É na pura lâmina da voz que o poeta sustém com toda força os fios da vida.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Novo Canto Geral
Partir e levar, para outras plagas, o sonho irremido dos imigrantes dos sonhos
E, se pelo espaço, o olor das refregas carregue o céu de obumbras manchas
Cantar e cantar rente ao azul
Surgir dos encantos inapreensíveis pelo afã vão dos silogismos
E escoar rente ao azul pelo milagre do pão e pela balança da justiça a desabar
Nos interstícios do cio da aurora nos interstícios da fúria esperada dos justos
Partir, Partir e Partir sem medo e nada deixar além da ilusão de pertencimento
Para poder pertencer para poder amanhecer rente ao azul
Sargaços marinhos sob as insígnias do que parece não ter retorno
Os signos marinhos bafejam as falésias porque amar é sobrevoar insandecido os promontórios em velocidade infinita
Vergar os campos onde os sumos adstringentes dessuma sob o sol e o cristal ainda por elaborar cutila no pomar da infância
A infância só termina quando nada mais assombra
A infância só começa quando não se teme mais o desvanecer das formas
Tudo o que vive em plenitude merece renascer
A tua beleza pertence mais a mim do que a ti
Porque é em mim que ela viceja drástica
Com seus sustos, surtos e arrebatamentos.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.