Arquivos mensais: novembro 2022

A FARSA DO PLANO REAL

A Ruy Barbosa Oliveira, cuja vocação pública faz enorme falta

Os subscritores do plano real escreveram que: 1) a vinculação dos preços de mercadorias e serviços ao dólar teria efeito deflacionário; se não fosse trágico pelos efeitos deletérios que provoca nos interesses nacionais, seria risível a assertiva; 2) a diminuição e a desburocratização de impostos geraria concorrência entre as mercadorias e serviços importados em cotejo com os nacionais, tendo como fundo compartido o dólar, e, portanto, a diminuição dos preços de mercadorias e de serviços. Na verdade, desata a destruição da economia nacional e prejuízos incalculáveis aos setores exportadores e às trocas comerciais, ante a realidade cambiante da dinâmica internacional.

Na verdade, o plano real é uma farsa; uma forma ardil e artificiosa de, por meio de linha de menor resistência, combater a inflação à custa da economia popular e do achatamento, sutil e indisfarçável, do poder aquisitivo.  É uma farsa para submeter o Brasil aos efeitos dominadores do dólar. O real não é existe. A moeda nacional, se seguirmos rigorosamente o marxismo ortodoxo, é o dólar.

Todos os governos que se alinharam ao plano real- o pior plano econômico da história do Brasil- são antinacionalistas e antipopulares. Na verdade, não temos burguesia nacional. Para citar Gunder Frank, na modernidade periférica, temos uma lumpemburguesia que, de forma explícita, sem qualquer pudor, subordina a economia aos interesses imperialistas dos bancos internacionais sob o domínio dos EUA.

O tal do plano real indexou a economia nacional de forma que, qualquer flutuação fronteiriça, provoca o aumento dos preços dos produtos de consumo básico, a desaceleração da atividade produtiva e prejuízos inestimáveis ao setor exportador, afetando, sobremaneira, a balança comercial, tornando a discussão sobre superávit sibilinas afirmações desprovidas de critério científico. Industrialização, economia nacional-popular e plano real são antíteses, insolúveis. Não deixa de ser irônico que o sintoma venha a público apresentar-se como solução. O plano real- que alguns se jactam de ter criado- é um plano inflacionário cujo efeito principal é a devastação da economia nacional e das relações comerciais da nação na medida em que se arrima num cenário mundial monolítico.

Na aurora da República, Rui Barbosa- jurista genial, mas de retórica empolada, criou o encilhamento, um plano econômico profundo de cunho nacional que foi boicotado pelo Império Britânico. Ah, eram tempos em que, mesmo na premência do mais cruel colonialismo, havia inteligências. O Brasil sempre está por nascer.

O plano real, na encruzilhada em que estamos metidos, cria, imediatamente, duas disjunções: a) a existente entre os setores exportadores e a aristocracia financeira, e b) a existente entre a submissão ao dólar e a necessidade imperiosa de trocas mercantis mais equilibradas de maneira que, nas oscilações do capitalismo mundial integrado, estamos a atingir a borda da falência.

A incompetência das classes dominantes, representadas por todo o espectro político, no Brasil, não cabe mais no orçamento. Uma nação cuja  institucionalidade não é porosa à contradição e à crítica emperra de forma irremediável.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado, Professor da UNEB.

PANDEMIA, O FIM E O COMEÇO DA POLÍTICA

Ao filósofo Bernard Bourgeois, o mais hegeliano de todos

Toda definição correta, desde Aristóteles, deve estabelecer o gênero próximo e a diferença específica. A endemia e a pandemia abrangem situações de propagação de doenças; na endemia, limita-se a uma região e os números de casos se mantêm em proporção aritmética de forma regularmente controlável; a pandemia estende-se a várias regiões e a doença se propaga em proporção geometria, podendo tornar-se incontrolável.

No contexto de formações coloniais, marcado pela colonialidade do poder, a pandemia desata um conjunto de questões problemáticas, sobretudo, no que se refere ao problema central da política.

Jacques Rancière articula o político ao desentendimento, isto é, à luta de classes como condição do político? Mas para definir o fenômeno devemos nos limitar à condição? Não seria necessário engajar o problema numa dimensão mais ampla?

Chantal Mouffe, ao vincar a distinção entre o político e a política, define política como antagonismo constitutivo da sociedade[1]. Mesmo desenvolvendo o conceito em relação ao liberalismo, falha, a nosso ver, grave, vejamos como aborda a questão:

“(…) entendo por ‘o político’ a dimensão de antagonismo que considero constitutiva das sociedades humanas, enquanto entendo por ‘política’ o conjunto da prática e instituições por meio das quais uma ordem é criada, organizada a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo política’’[2]

É um grande equívoco definir a política em referência à constituição de uma ordem. Conforme afirma Badiou, numa tradição que remonta a Maquiavel, passando por Rousseau a Althusser, a política existe para evitar o enfrentamento de um vazio que obseda as formações sociais. A política é menos o lugar da unidade do que a luta para preencher um vazio.

Laclau invoca o X incognoscível para indicar o vazio. Não há nada de incognoscível. O vazio é fruto do movimento dinâmico das lutas de classes, nas intersecções econômicas e políticas.

Outro equívoco grave de Mouffe é associar a concepção deliberativa a um resgate da moralidade no âmbito político[3]. É nada conhecer sobre Aristóteles.

Pensamos que a grave questão foi bem colocada por Engels, apesar de não ter levado à consumação plena o princípio dialético ‘’o um se divide em dois’’:

“O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é ‘a realidade da ideia ética’, nem ‘a imagem e a realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes produto da sociedade, quando essa chega a um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, essas classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-la dentro de limites da ‘ordem’. Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, o Estado.[4]

Fazendo uma ligeira variação, podemos definir o Estado como instância da totalidade social-histórico, isto é, como lugar de mediação que, em razão da correlação de forças, pode ser um lugar de repressão ou de expressão da vontade geral. Nesse sentido, é crucial resgatar o conceito de deliberação. Não se delibera sobre o impossível nem sobre o necessário, já articulávamos em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social.

A deliberação se insere num contexto de escolha da própria escolha. Afirma Aristóteles que ‘’do justo e do injusto leva à aporia’’, isto é, a contingência não enquanto caos, mas como abertura conjuntural em que há possibilidade de escolher para além das engrenagens internas de um sistema reprodutor de sua mesma forma sob variações enganadoras.

Em razão das contradições do capitalismo, as formações sociais, desenvolvidas ou não, no contexto de pandemia, já não deliberam mais. Por exemplo, os discursos do Premier chinês Li Keqiang sobre taxas é uma prova cabal de que não se delibera mais.

Conforme disse Marx, o capital é o limite do capital. Em que sentido limite? No sentido platônico do conceito. O peso da dívida pública, as contradições no âmbito das classes dominantes, a dispersão popular, em contexto de pandemia, engendram um acúmulo de problemas e, como corolário, a incapacidade de deliberar, descambando-se para proscênio tétrico e sombrio de massacres de populações.

O livro Por Uma Renovação Marxista da Teoria da Dependência, demonstrando a dívida pública como mecanismo de reprodução da dependência econômica das formações sociais periféricas, é um ensaio preliminar para o retorno da política e, por corolário, da deliberação. Não há política no atual contexto do capitalismo mundial integrado.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor da UNEB.


[1] Em 2008, Em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social, definimos a política democrática como enfrentamento leal dos conflitos.

[2] MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 8.

[3] Habermas tem resgatado o conceito de deliberação esvaziado da dimensão profunda que tem em Aristóteles.

[4] ENGELS, Friedrich. A Origem do Estado, da Família e da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 160.

Ignota, no entanto brilha

Felina, na desconfiança

Pressentido tudo

No presságio dos pélagos

Em busca de algum signo

Que possa explicar

em breu

em chuva,

narinas e olhos

em fúria

em lâmina, cortando a superfície

para revolver a mina explosiva

abrolhos

Felina, na confiança felina

Sutil e densa

Sempre além

E assim, ela, brilha nela mesma

Quando é tudo

Desde que tudo exploda

Que tudo transcenda

Que tudo seja tudo

Que o bosque seja pássaro

Que a noite seja estrela

Que o rio seja água

Que no paladar a laranja

Lavre a voz adstringente

Lavre a voz luminosa

Lavre a voz na foz no fogo

nos vãos

em pleno dia

buscando a foz

A voz pela voz

Para esplender

Para ferir

Para sangrar.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Sobre o centenário de João Cabral de Melo Neto

No prelúdio da discussão sobre o conceito de natureza em Schelling, Hegel afirma: ”mas as pedras clamam e se suprassumem no espírito”

Neste interstício entre o inorgânico e o orgânico, o aspérrimo mistério da vida a desafiar a atenção aguda dos filósofos, dos poetas e dos cientistas.

A poesia de Cabral é uma inspeção meticulosa, difícil, bruta e afirmativa do clamor das pedras. A pedra não como metáfora da imobilidade, mas da maleabilidade das formas com que a vida em seus meandros e em seus enclaves complexos se materializa. A lição de pedra que resiste ao fluir, mas, ao fluir, a ser maleada.

O recurso à pedra não é um sucumbir ao imediato, mas uma forma de evitar a dispersão das representações vazias em que incorrem com muita facilidade a poesia sofrível de éter, nácar e nenúfar. Contra esta loucura que obsidia a poesia, João Cabral busca elementos nas experiências do enfrentamento com o inóspito, com as situações fronteiriças e, num combate espiritual à guisa de Rimbaud, a afirmação incondicional da vida. A poesia de João Cabral é repassada de um vitalismo. Não o vitalismo biológico de Deleuze nem o vitalismo matemático de Badiou. É um vitalismo periférico, da hulha e do betume, vitalismo a contra-pelo, contra o sol quando cresta demasiado, contra a queda.

O último Heidegger cedeu à possibilidade, que julgava inconveniente, de aproximar o pensamento e a poesia, colocando o poeta como o guardião do aberto. Não é fácil ser o guardião do aberto, pois, implica a assunção do risco. O aberto é o risco, mas, além e aquém da promessa, é o lugar da vida. No aberto, é preciso a força do cante a palo seco:

“O cante a palo seco

é um cante a esmo:

exige ser cantado

com todo o ser aberto;

é um canto que exige

o ser-se ao meio-dia,

que é quando a sombra foge

e não medra a magia”

É na pura lâmina da voz que o poeta sustém com toda força os fios da vida.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Novo Canto Geral

Partir e levar, para outras plagas, o sonho irremido dos imigrantes dos sonhos

E, se pelo espaço, o olor das refregas carregue o céu de obumbras manchas

Cantar e cantar rente ao azul

Surgir dos encantos inapreensíveis pelo afã vão dos silogismos

E escoar rente ao azul pelo milagre do pão e pela balança da justiça a desabar

Nos interstícios do cio da aurora nos interstícios da fúria esperada dos justos

Partir, Partir e Partir sem medo e nada deixar além da ilusão de pertencimento

Para poder pertencer para poder amanhecer rente ao azul

Sargaços marinhos sob as insígnias do que parece não ter retorno

Os signos marinhos bafejam as falésias porque amar é sobrevoar insandecido os promontórios em velocidade infinita

Vergar os campos onde os sumos adstringentes dessuma sob o sol e o cristal ainda por elaborar cutila no pomar da infância

A infância só termina quando nada mais assombra

A infância só começa quando não se teme mais o desvanecer das formas

Tudo o que vive em plenitude merece renascer   

A tua beleza pertence mais a mim do que a ti

Porque é em  mim que ela viceja drástica

Com seus sustos, surtos e arrebatamentos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.