Arquivos mensais: fevereiro 2022
Putin: sectarismo e fascismo no Brasil legitimam a covardia contra a Ucrânia
O Putin é uma figura emblemática, pois consegue ser ponto de convergência da dita “Esquerda Progressiva”, fortemente identificada com Lula e o PT e do Bolsonarismo ignaro, representante hoje do chamado “Conservadorismo Liberal”. Para os primeiros, Putin representa ainda a resistência comunista diante da opressão imperialista dos Estados Unidos. E, embora, no caso da recente deflagrada guerra seja a Rússia a agressora, a nossa esquerda acredita que a Ucrânia não tem o direto de se autodeterminar, como qualquer outra nação. E isto seria perfeitamente justificável dentro do ideário desse falso esquerdismo, já que a Rússia estaria apenas exercendo o seu direito de defesa contra aquele povo rebelde que desde os tempos da extinta União Soviética já era uma pedra no sapato do comunismo stalinista, tal qual fizeram sucessivos presidentes americanos contra Iraque e Afeganistão, por exemplo.
Para os bolsonaristas, dada a fragilidade moral que ostentam, o Putin é a personificação do seu desejo sexual mais latente, pois simboliza aquela figura Freudiana, falocêntrica do machão, supostamente hétero, homofóbico, misógino, autoritário, que resolve tudo com tiro, porrada e bomba. E que age contra as minorias por acreditar que essas devem se submeter aos imperativos da maioria, como as mulheres que devem submissão aos caprichos dos homens, e gays e negros se contentarem com a discriminação, o racismo, o assassínio, simplesmente por serem quem são. E, apesar de contradizer a pregação moralista ecoada como mantra, dentro do código moral rígido que tentam impor aos outros, na sua intransigente defesa da família, da pátria e de Deus, o chamado “gado” acredita que não podem ser levados em conta os reiterados casamentos do líder, a utilização de verba pública por ele para “comer gente”, a indisposição indisfarçável para o trabalho e a honestidade falseada, abalada por um esquema familiar de locupletarão às custas do erário, distintos de estratagemas como Mensalão e Petrolão apenas pelo montante surrupiado até agora.
E as semelhanças não ficam por aí. Tanto a direita fascista que idolatra Bolsonaro como a esquerda que atribui a Lula ares messiânicos fazem uso do negacionismo político e histórico para sustentar teses contraditórias. Como é o caso da utilização do conceito de Guerra Defensiva, criado pela Casa Branca, e fartamente aceito pelos dois grupos para justificar a agressão da Rússia à Ucrânia. No pensar deles, amplamente regugitado por expoentes da dita “Esquerda Progressista” e do Bolsonarismo escatológico, a Ucrânia seria a única nação que não faria jus ao reconhecimento do direito intrínseco de cada país à soberania e à defesa nacional. E pouco importa para o pensamento dicotômico preponderante no Brasil atual estupidificado, o fato de que o povo ucraniano sempre viveu sob o peso da opressão do Kremlin, não importando o grau de colaboração dado em episódios trágicos como a Segunda Guerra Mundial, durante a libertação do Povo Judeu do campo de concentração nazista de Auschwitz.
Os protagonistas da cena política deletéria atual no Brasil ignoram que a civilidade exige sacrifícios. Principalmente do grau das liberdades públicas. Porque as relações hoje, institucionais, interpessoais ou entre nações, são regidas por um forte nível de responsabilidade e de renúncia que tendem a reduzir a amplitude do exercício dos direitos e garantias individuais, ao mesmo tempo em que limita os atos de império, a um escopo obrigatório de sopesamento dos bens jurídicos a serem tutelados para o bem comum, a fim de se manter a constitucionalidade horizontal das relações sociais e evitar que o Estado esmague o cidadão.
Entretanto, propositadamente surdos a essa verdade gritante, e aproveitando-se dessa imposição histórica da limitação responsável das liberdades públicas como condição imprescindível do processo civilizatório, forças políticas fascistas, de forma sutil e efetiva, e sob a benevolência da dita “Esquerda Progressista”, que ver na deterioração da sociedade brasileira um trunfo eleitoral para reassumir o poder, constroem discursos antidemocráticos alicerçados em teses falaciosas de que as restrições a determinados direitos – como erroneamente se crer haver no direito de defesa, pela restrição ao acesso à armas – seria violação inaceitável da liberdade do cidadão. E essas narrativas são alimentadas por uma eficiente metodologia de distorção semântica, fundada em interpretação própria do termo liberdade, ao ponto da polissemia utilizada abarcar também os sentidos contrários das palavras, dentro do conceito atual da chamada pós-verdade. Ao ponto de subverterem o conceito de agressão armada para creditar à ação belicosa o propósito de libertação do povo da nação invadida ou, ainda, repelir supostas futuras agressões dentro do direito de autodefesa compreendido no conceito de “Guerra defensiva”, usado como muleta pela esquerda para legitimar a covardia de Putin na Ucrânia e pelos USA para oprimir nações mundo a fora.
Isto posto, se você não tem lugar nas fileiras do sectarismo político da denominada “Esquerda Progressista” do Lula e o PT e nem é um dos sequazes da necropolítica abjeta do Bolsonaro; mas, a contrario sensu, também não é afeito a rezas brabas, orações, preces, simpatias, maledicências, augúrio, rogação de praga, presságios, vaticínios e palavras de baixo calão, talvez seja oportuno ensaiar um “Deus nos Acuda”, uma corrente de fé ou de livramento; aprender a oração do envultamento de São Cipriano ou simplesmente torcer para que os nossos deuses de pés de barro, predominantes no modo de pensar a Política, aqui e no mundo, não mergulhem a humanidade na mais tenebrosa de suas experiências na terra, sob o pretexto de nos livrar de mal maior.
Por: Adão Lima de Souza, um reles escrevedor.
LIBERDADE, IGUALDADE, PROPRIEDADE E BENTHAM
A visão ‘teleológica’ da história da modernidade como evolução e das técnicas como avanços que trarão, por si só, benefícios comunitários são equívocos históricos. A narrativa de um progresso exponencial e a crença infundada de que as técnicas são neutras e, por sua natureza intrínseca, teriam um uso universal serviram para camuflar o fato, mesmo óbvio, mas entrevisto apenas por alguns filósofos, de que não há como apartar a história da técnica da história da economia e da história da política.
Marx, em Ideologia Alemã, faz uma associação entre o sistema ideológico e o mecanismo da câmara escura. Afirma:
“São os homens os produtores de suas representações, de suas ideias, mais os homens reais, produtores, tais como são condicionados por um desenvolvimento determinado das forças produtivas e das relações que lhes correspondem e compreendendo as formas mais largas que podem tomar. A consciência não pode ser outra coisa que o ser consciente e o ser do homem é o seu processo de vida real. E, se, em toda ideologia, os homens e suas relações se apresentam de cabeça para baixo como numa câmara escura, esse fenômeno decorre do processo da vida histórica, absolutamente como a reversão dos objetos sobre a retina decorre do processo de vida diretamente físico.” [1]
Para além da ideia fecunda de que a ideologia, mesmo sendo uma fantasmagoria, não significa uma mera ilusão, pois, é uma fantasmagoria fruto das relações sociais, ancorada nas relações materiais, a relação entre o processo ideológico e o mecanismo da câmara escura não transborda do teor metafórico e permite vislumbrar a correlação intrínseca entre tecnologia e formas de dominação?
No cerne de O Capital, Marx coloca a fórmula central dessa modernidade capitalista: “Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham”. Na medida em que os primeiros termos existem apenas na retórica, são anulados constantemente por estruturas de dominação total: a retórica da liberdade e da igualdade serve para camuflar as estruturas subjacentes de poder que buscam submeter as formações às injunções do poder econômico.
Não se pode esquecer a questão central de que um determinado modo de produção precisar se reproduzir a si mesmo. Numa carta a Kugelmann, em que faz observações fabulosas sobre a ciência econômica burguesa e sobre a teoria do valor, Marx deixa claro que uma formação social que não reproduz as condições da reprodução ao mesmo tempo em que produz pode perecer.[2]
Urge perguntar se a reprodução envolve o uso das tecnologias para fins de controle social? Uma formação social, tisnada de contradições, fadada a não enfrentar os conflitos que lhe são constitutivos, só se reproduz se constringir os espaços de liberdade. Ocorre que a repressão ostensiva se deslegitima facilmente. Dessa forma, as técnicas modernas, na medida em que proporcionam formas sutis de vigilância e controle social, ensejam formas de coerção que se tornam cada vez mais discretas e mais eficientes nos seus intentos.
Se Marx já antecipava que a lógica espacial e da vigilância do sistema fabril produzia a anexação da vida à operação do detalhe, mostrando que a divisão do trabalho, ao invés de gerar solidariedade como pensava Duhkheim, significava a vinculação do trabalho a uma operação parcial, retirando do trabalho caráter de arte, tornando o processo de trabalho apêndice do processo de valorização de capital, Foucault, nas sendas de Marx, identificou as formações disciplinares. O sistema fabril se esparge como paradigma por todo o corpo social através de instituições de produção da dócil-utilidade.
Em Vigiar e Punir, livro cujas tensões internas precisam ser lidas corretamente, Foucault vislumbra, no século XVII e XVIII, o surgimento de instituições que, por meio da distribuição espacial, enquadravam os corpos numa disciplina que funcionava como operador econômico, voltado a esquadrinhar os indivíduos, dobrando-os às injunções de produzir mais economicamente, diminuindo, concomitantemente, as forças políticas que pudesse desatar.
A disciplina funciona como criadora de positividades, seja na forma de poder, seja na forma de saber: o indivíduo enquanto mônada produtiva surge das configurações dos dispositivos disciplinares. Mas existe um elemento presente no livro que até então passou desapercebido. Nos interstícios dessa obra de lucidez metálica, não se analisa apenas a disciplina-bloco que opera pelo confinamento, mas, sobretudo, a disciplina-mecanismo que engendra dispositivos funcionais que, pelo jogo do olhar, tornam o poder mais sutil, mais leve e mais eficaz. A análise do panóptico de Bentham mostra justamente as tensões da transição ou da convivência mútua entre a disciplina-bloco e a disciplina-mecanismo.
Na disciplina-mecanismo, pelo jogo do olhar e, acrescente-se, da escuta, produz-se uma forma de vigilância mais discreta, mais capilar e mais sutil, cuja materialidade se torna vaporosa em termos de origens e mais eficaz em termos de efeitos. Uma forma de poder que se materializa em seus efeitos, mas que dissipa os rastros que pudessem identificar a sua própria origem. Poder total dos efeitos, irresponsabilidade total da ação do poder.
Foucault, numa clara remissão a Marx, registra que ‘’a máquina de ver é uma câmara escura em que se espionam os indivíduos”[3]. Ótica e escuta total, destinadas a converter cada indivíduo, identificado como óbice aos projetos nefastos de dominação total, à margem de qualquer legalidade, um caso a ser observado, vigiado, submetido à logica do espectro total e até destruído fisicamente.
No centro da disciplina-mecanismo, a figura central é o exame enquanto mecanismo binocular de vigilância ininterrupta. O exame estabelece, segundo Foucault, uma economia da visibilidade no exercício do poder, faz da individualidade objeto do documentário da vigilância, cerca o indivíduo, de forma rarefeita e muita concreta, fazendo dele um caso de inspeção minuciosa e sem trégua das formas contemporâneas do panóptico.[4] É uma forma de poder que, atuando de forma invisível, constrange os indivíduos a uma visibilidade obrigatória para torna nula sua potência política ou de pensamento. Atualizando a fórmula de Marx: Liberdade, Igualdade, Capital Financeiro e Tecnologias subsumidas a intento de poder total é a insígnia de uma época de controle total.
Agambem, em várias passagens, afirma que, quando emergirem as singularidades que escapam à laminação do poder, virão os tanques de ferro. Já não se precisa de tanques de ferro, as novas técnicas de olhar e de escutar já chegam antes que as singularidades apareçam no horizonte político[5]. A palavra liberdade, mesmo massacrada, nunca teve uma atualidade tão gritante.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 50-51.
[2] MARX, Karl. Lettres à Kugelmann. Paris: Editions Sociales, 1930, p. 99-100, carta de julho de 1868. No texto Ideologia e Aparelhos Ideológicos, Althusser faz um uso conceitual das ideias contidas nessa carta e mostra que todo poder fusiona consenso ideológico e coerção. Podemos acrescentar que, na temática da reprodução, é preciso inserir o uso das técnicas que figuram como mecanismos de coerção mais sutis e mais eficientes que a repressão física visível.
[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis: Editora Vozes, 2009, p. 196.
[4] FOUCAULT, Michel. Ob. Cit. Capítulo sobre o exame. Na obra Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020, fizemos uma análise de como o exame, agindo à margem da legalidade, chega às singularidades de forma capilar. Um poder tão sutil que opera à margem da lei. Heidegger afirma que a Terra é o aberto do qual não se pode afastar porque nele estamos imersos. Diante das técnicas modernas, a própria Terra se torna objeto do panóptico. Quem sabe estamos presenciando a necessidade de um direito do espaço cósmico e interplanetário? Nesse contexto, como saliento na obra citada, a tese do espaço jurídico vazio deve ceder às injunções da comunidade humana universal.
[5] Toda técnica é desdobramento de um sentido.
KANT E AS ANALOGIAS DAS EXPERIÊNCIAS
A Alain Badiou
“Nenhum mundo é tal que sua potencia transcendental pode desrealizar por completo a ontologia do múltiplo”
Alain Badiou, Lógicas de los mundo
O que é permite a experiência? O que é a experiência? Na filosofia alemã moderna, o conceito de experiência, de Hegel a Adorno, tem uma preeminência que precisa ser cuidadosamente desvelada. O conceito ganha vigência e assoma como essencial na Crítica da Razão Pura de Kant. Mais do que um livro sobre os limites, as condições e as possibilidades do conhecimento, podemos afirmar que é um livro sobre quais são as condições da experiência. A busca sobre as condições do conhecimento é uma função da necessidade de compreender o sentido da experiência.
Kant confessa que foi Hume que lhe tirou do sono dogmático[1]. Qual o sentido da afirmação? É preciso remontar à questão que Hume planteia e verificar a forma com que Kant responde à questão. Hume questiona o princípio da causalidade pelo qual um fato A está, necessária e universalmente, atrelado ao fato B. Para Hume, não há nada que, do ponto de vista da lógica, aponte para verificação lógica de que dois eventos estejam vinculados do ponto de vista da necessidade. É cediço que, na filosofia, há necessidade quando um fato é sempre da mesma forma, mantendo-se constante e uniforme: a necessidade trata das coisas que sempre são como são. No evolver da filosofia, necessário significa aquilo que obedece às leis naturais.
Hume rechaça a possibilidade de os conhecimentos encontrarem uma justificação na percepção sensível de tal forma que o liame entre os fenômenos é mais fruto do hábito do que da lógica: uma necessidade subjetiva fundada no hábito aparenta emanar de uma necessidade objetiva arrimada no conhecimento. Afirma:
“Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta em direção da outra, mesmo que se suponho que o movimento na segunda me veja acidentalmente sugerido como resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar dessa causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda linha ou direção? Todas estas suposições são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível com o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta preferência.” [2]
Seguindo Quentin Meillassoux[3], podemos afirmar que Hume não inquire porque as leis são necessárias, mas de onde vem a crença na necessidade das leis. A causalidade não seria um princípio ínsito à natureza, mas uma crença fundada no hábito: nossas inferências sobre a experiência decorrem mais do costume do que do raciocínio. Trata-se de um costume articulado na repetição da temporalidade. Afirma Hume: “Todas nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado”
Aqui, vamos arriscar a hipótese de que a solução do grave problema de Hume passa pela compreensão da filosofia transcendental de Kant[4] e o papel das analogias da experiência. É preciso remarcar que transcendental não se confunde com transcendente. O conhecimento é transcendental quando versa não sobre os objetos, mas sobre o modo de conhecê-los. Em sendo a matéria do conhecimento heteróclita e heterogênea, apenas a cognição, através dos conceitos e das categorias, permite conferir uma forma à rapsódia de sensações, isto é, um lugar de ligação como totalidade. A forma, então, é a condição sob a qual um objeto pode ser representado conceitualmente.
É nesse contexto que é preciso insertar a problemática das analogias das experiências. Nos textos denominados pré-críticos, cuja importância deve ser exalçada, Kant define a experiência como uma forma de conhecimento que exige o entendimento. Já se entrevê não uma dicotomia, mas uma conjunção entre o sensível e o inteligível. Não há experiência que não esteja emoldura por categorias de conhecimento.
Quando da dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento, Kant vinca a ideia central do esquematismo, que confere a possibilidade da experiência e que doa realidade objetiva à nossa cognição. Entende-se por subsunção a colocação de um objeto sob um conceito, devendo haver uma homogeneidade – símiles correspondentes- entre o conceito e o objeto.
O esquema, então, apresenta-se como a condição formal da sensibilidade, a condição pela qual um objeto pode ser representado e apresentado. No dizer de Kant: “O esquema não é, pois, propriamente senão o fenômeno ou o conceito sensível enquanto concorda com a categoria”[5]
Os esquemas analógicos tem um uso regulador na medida em que a realidade pode apresentar novos aspectos não subsumíveis e que exigem uma retificação do conhecimento. A analogia, dentro dessa lógica, tem uma importância crucial que passou desapercebida. Se Kant responde ao dilema de Hume salvaguardando um espaço de pensamento transcendental que, por ser apriorístico, é capaz de resistir ao ceticismo conforme o qual a experiência é flutuante e heteróclita e, portanto, insuscetível de teorização e conforme o qual a própria causalidade é uma crença fundada no hábito e não na lógica, ao articular a analogia e experiência, por isso mesmo, projeta a possibilidade de a ciência se enriquecer com a experiência, assimilando novos aspectos da realidade, num processo infinito do conhecimento, não estaria assim escapando da imagem tradicional de que é um pensador que emperra na indecidibilidade entre o inteligível e o sensível?
Ao tratar da síntese, busca demonstrar que a ligação da diversidade dos elementos dos fenômenos não pode emanar dos sentidos e, pois, da intuição sensível, mas somente dos conceitos e das categorias a priori: as categorias se apresentam como conceitos que prescrevem a priori as leis dos fenômenos. Já as analogias, mesmo não tendo um sentido apriorístico, inserem-se no passe entre a categoria e a experiência. Se sobrelevarmos o papel da analogia e mesmo das categorias, Kant não é mais o filósofo do abismo entre o conhecimento categorial e a realidade sensível como sói divulgar-se, mas o que, de forma inaugural, pensou o passe entre o sensível e o inteligível.
Nesse ponto, tanto Hegel quanto Marx, ao conferirem mais movimento às premissas do pensamento kantiano, são herdeiros diretos de Kant[6]. Em Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, Hegel assinala: “Em qualquer proposição de conteúdo inteiramente sensível, como ‘essa folha é verde’, já estão inseridas categorias: ser, singularidade’’[7].
É no centro vivo da analogia que Kant resolve as contradições entre o inteligível e o sensível, entre o transcendental e o empírico e aqui se encontra a gênese moderna do pensamento dialético. Kant diferencia o sentido matemático e o sentido filosófico da analogia:
“Em filosofia, as analogias significam algo diferente do que elas representam em matemática. Na matemática, são fórmulas que exprimem a igualdade de duas relações de grandeza, e elas são sempre constitutivas de forma que, quando três membros da proporção são sempre constitutivos, o quarto é também dado por ele mesmo, isto é, pode ser construído. Na filosofia, ao contrário, a analogia é a igualdade de duas relações, não de quantidade, mas de qualidade: três membros sendo dados, eu não posso conhecer e dar a priori senão a relação com um quarto termo, mas não o quarto termo ele mesmo; eu tenho somente uma regra para procurar na experiência e um signo para lhe descobrir. Uma analogia da experiência não é senão uma regra segundo a qual a unidade da experiência (não a percepção ela mesma, como intuição empírica em geral), deve resultar das percepções, e ela se aplica aos objetos (aos fenômenos), não como princípio constitutivo, mais simplesmente como princípio regulador”[8]
A analogia da experiência é uma regra segundo a qual a unidade aberta da experiência deve resultar da unidade sintética das percepções e, ao se aplicar aos objetos não como princípio constitutivo, mas como princípio regulador, converte o conhecimento num processo aberto às novidades e ao cotejo fático numa alteridade provida de motivação comunitária sem se ensimesmar num sistema fechado e refratário ao uso público da razão.
Partindo da premissa de que os modos do tempo são a permanência, a sucessão e a simultaneidade -cuja fonte é indisfarçavelmente a física de Newton e guardam relação com a noção de temporalidade e de espacialidade que lhe é subjacente- Kant assinala três analogias da experiência, a saber: a) a substância persiste no meio das mudanças dos fenômenos (permanência); b) todas as mudanças sucedem conforme a lei da ligação dos efeitos e das causas (sucessão); c) todas as substâncias, na medida em que podem ser percebidas como simultâneas no espaço, estão numa ação recíproca (ação recíproca ou comunidade).[9]
Percebe-se que a analogia da causalidade permite superar o dilema de Hume, revelando-se que a experiência não é aleatória, alheia e estranha à teorização[10]. Se Kant reconhece nos conceitos as condições a priori da possibilidade da experiência, nas analogias da experiência –especialmente a da causalidade- verifica-se a conjunção entre o transcendental e o empírico numa relação criativa em que, ao mesmo tempo, temos o rigor de uma regra bem aplicada e a possibilidade de, diante de novas circunstâncias, fazer o conhecimento avançar.
Os sistemas teóricos analógicos, então, são motivados e, por isso mesmo, o itinerário percorrido não altera o ponto de partida; ao contrário, realiza-o de forma cabal de modo que, a cada circunstância nova e desconhecida, os esquemas conceituais se enriquecem com as particularidades com que depara. O modo com que os esquemas teóricos indexicam o real é analógico. Por meio da analogia, para usar a terminologia de Badiou, podemos nos acercar do vínculo entre o ser-múltiplo e os esquemas transcendentais de sua aparição.[11] Sendo a experiência uma síntese das percepções, um aspecto da realidade só pode ser identificado enquanto se relacionar com um símile- que o marca- no indexador transcendental: a realidade é a forma com que a estruturamos por meios dos esquemas transcendentais.
As analogias da experiência, como tratam da relação da busca de um não dado a partir de um dado, apresentam um uso regulador, permitem ao conhecimento avançar de forma a abarcar aspectos novos: unifica, de forma frutuosa, rigor e invenção. A variação das imagens dá ensejo à identificação das continuidades e das descontinuidades entre os fenômenos, articulando-se os nexos causais entre os fatos.
O não conhecimento de aspectos ocultos do real não é prova do malogro da ciência, mas afirmação de sua imperatividade. À ciência cabe mesmo investigar o que está oculto. Diante disso, é possível reconfigurar, à luz da dialética, a ideia de necessidade e de contingência. Necessário é o que podemos relacionar às leis gerais; contingente o que, não podendo ainda ser remontado às leis, permanece oculto e desconhecido. O que chamamos contingência é apenas o que remanesce incompreendido em suas causas. A causalidade analógica, no contexto, cumpre papel decisivo porque enseja não só o cálculo de um quarto termo desconhecido, mas a descoberta de uma relação existente num nível profundo entre os vários termos, mas ainda oculta. É, à luz da indexicação transcendental, que a relação entre os termos é, pela primeira vez, apresentada em seus nexos.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] KANT, Emmanuel. Prolégomênes a toute métapsysique future qui pourra se présenter comme science. Paris: Vrin, 1941, p.13.
[2] HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Editora Nova Cultura, p. 51.
[3] MEILLASSOUX, Quentin. Después de la Finitud: Ensayos sobre la necesidad de la contingência. Buenos Aires: Caja Negra, 2015. A ontologia da finitude redunda numa filosofia do malogro e da resignação. Merece contemplação a obra de Sartre por ter sido a única que, adstrita às contradições da finitude, tenha dela extraído consequências libertadoras. Lendo a obra retroativamente, a palavra final não está na melancólica conclusão de O Ser e O Nada em que o ser humano, mergulhado na contradição de ser para si inconcluso e buscar realizar-se enquanto ser em si completo, não passa de uma paixão inútil; mas no final do livro A Náusea em que chega à conclusão de que a arte sobrevive ao artista na eternidade e na duração. Dentre outras inestimáveis contribuições do livro ‘’O Ser e O Evento’’, de Alain Badiou, está a de ter desarticulado a ontologia da sanha da finitude, devolvendo, com todas as consequências decorrentes, ao infinito a posição central na filosofia e, também, na ciência. A ciência, com seus functores, eixos e coordenadas, tem dificuldade de lidar com o infinito. É no Oriente, especialmente na China, onde a relação entre ciência e infinito tem as concreções mais fecundas, desde que subsumidas para o comum. O trem chinês e os computadores quânticos são a prova viva dessa relação.
[4] Existem três imagens do pensamento: o empirismo, o transcendentalismo e o especulativo. Em Hegel, a tendência especulativa consegue reunir de forma inovadora o empirismo e o transcendentalismo. sobre o especulativo em Hegel ver o genial livro El Porvenir de Hegel, da filósofa Catherine Malabou.
[5] KANT, Emmanuel. Prolégomênes a toute métapsysique future qui pourra se présenter comme science. Paris: Vrin, 1941, p.13.
[6]Não se compreende a afirmação de Marx de que o concreto é a síntese de múltiplas determinações sem ter lido, linha a linha, a Crítica da Razão Pura.
[7] HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). São Paulo: Loyola, 1995, p.42.
[8] KANT, Emmanuel. Critique de raison pure. Paris: Flammarion, 1976, p.218.
[9] Diante das novas descobertas da física quântica, podemos arriscar a hipótese de que as analogias da experiência em Kant podem ser renovadas sem perder a dimensão rica que ora ostentam nos seus escritos.
[10] Sobre a relação entre as crises de paradigmas científicos e as crises do modo de produção capitalista bem como a necessidade de rechaçar o caráter aleatório dos fenômenos para reafirmar a necessidade de compreendê-los cientificamente, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020. Pelas injunções do modo de produção capitalista, muitos fenômenos são lançados na irracionalidade para que não sejam enfrentados. Existe um obscurantismo científico inerente ao capitalismo que precisa ser revelado e criticado.
[11] BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: El ser y acontecimento, 2. Obra-prima do pensamento, de rigor lógico robusto. Sobre a questão levantada aqui, ver o Livro III, Grand Lógica, 2, El objeto.