Arquivos mensais: dezembro 2021

Tua Vigência

Vulneram-me os teus cabelos alongando-se arbóreos

Mulher vinda das seivas estelares,

retraças a felicidade do universo

Quero as ervas que instilam teu corpo

O que no campo abraça as invenções de um tempo urdido na candura

Na viagem, o orvalho inicia a corola:

O milagre em suas sementes de luz acolhe as sereias do teu olhar

Vindima e vime ramificam a tua existência

Finas malhas, folhas virentes como vozes

Candeias e candelabros vivendo destino amável

no largo em que cresce teu nome

Seria o próprio périplo beirando o verdor?

A preparação da chuva de novos seres?

Meu rebento abisma-se em tua nascente

Quando os sinos estrugem a música dos vitrais

A claridade que me cria e nutre vem de ti

De tuas florestas erguidas em pleno mel

Como um lugar terno cheio de virações e sépalas

Intuo e abeiro o mês invadido pelos matizes do Ipê

Eu te encontro na cidade possuída pelas árvores

E sei das águas a espelhar mitologias felizes

Posso contar-te dos milagres em que me refaço

Da manhã, da criança, das orquídeas e rizomas

Levanto-me: sou o canto que a terra sonha

Vislumbro a amazônia, a festa de rios que a tua vigência proclama

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento

ZIZEK E A MELANCOLIA EUROCÊNTRICA

“Quem está enredado em particularidades só vê particularidades”(Hegel).

Em artigo recente, publicado no Le Monde, Slavoz Zizek volta a defender o legado ocidental da Europa afirmando que os pontos altos dos iluministas continuam centrais para o mundo. Apesar de não dizer o que entende pelo signo Europa, é importante destacar que o texto não coloca a questão no ponto em que pode se apresentar adequada e justa. E, adequada e justa, vai no sentido que Lenin estabelecia: de demarcar um problema onde ele pode ser corretamente abordado.

Não há problema algum em reconhecer o legado filosófico da Europa, cuja negação seria de um obscurantismo absurdo, mas é necessário entender que a universalidade postulada pela Europa sempre se cingiu, nas práticas correntes, às investidas imperialistas e que, sob a veste de um humanismo excludente, desencadeou políticas de inimizades, espoliando povos inteiros de seus territórios e de sua autodeterminação.

Lembro Foucault – que soube exercitar o difícil exercício da tradução e da alteridade radical engajando-se em lutas anticoloniais como na defesa da Revolução Iraniana- quando dizia que as Luzes do Iluminismo também criaram as prisões e as instituições de sequestros, as quais tiveram como laboratórios os países submetidos, com muita violência, à apropriação colonial.

Se colocarmos a questão na lógica do sistema-mundo, o conjunto de valores europeu resulta frágil e antinômico porque, como salientava Sartre, num prefácio à obra Os Condenados da Terra de Franz Fanon, tece loas abstratas à universalidade, mas trata os outros povos como particularidades a serem exploradas. Esta patente contradição, essa chaga aberta, é diariamente vista e não dá para destacar o legado da prática que desencadeia.

O caso de Hegel é interessante e é fecundo para desobstruir a questão da unilateralidade eurocêntrica. Se, em algumas passagens, Hegel afirma uma espécie de teleologia em que o espírito desde os povos antigos culmina na Europa, no cerne vivo da fenomenologia do espírito, ao analisar a dialética do senhor e do escravo, Hegel afirma categoricamente que o senhor, por estar preso às particularidades, crispado na defesa renhida de seus próprios interesses, é incapaz de adotar uma postura mais abrangente, e que o escravo,  na medida em que está despojado dos atributos da humanidade, constitui a verdadeira consciência essencial e o único a poder consagrar, desde a ética da coragem, uma perspectiva verdadeiramente universal. Eis uma verdade que lança Hegel para além do eurocentrismo e que pode ser imediatamente reinvindicada pelos povos insurgentes contra o colonialismo. Seguindo essa lógica, Marx e Engels, em A Sagrada Família, afirmam que o proletário se perde na alienação, mas, ao mesmo tempo, adquire a consciência teórica dessa perda e, que, por estar privado da humanidade, o proletário é a classe capaz de adotar o ponto de vista universal concreto e verdadeiramente humanista.

Tem razão Enrique Dussel quando afirma que estamos numa época em que floresce uma filosofia mundial da qual o protecionismo teórico do Zizek, para usar Jacques Lacan, é o sintoma mais claro, filosofia cujas novas tarefas não apartam as teorias de seus efeitos políticos: a emergência de um novo movimento anticolonial é a prova mais concreta disso.

Permitam-me uma história: certa vez, numa palestra em que criticávamos a transplantação acrítica de teorias, um participante deu a entender que nós não podíamos criticar Dworkin. Entendemos perfeitamente e respondemos: se a razão é universal, ela passa por nós, então, desde que no rigor lógico, podemos ser um momento fecundo da razão: reiteramos nossas críticas a Dworkin.

Filósofos da América Latina, da Ásia e da África, uni-vos com os seus povos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Pão Ázimo

Erguer uma mão fanática de sol

Não temer o acre exercício de sonhar

Porque das nervuras do que é metal ou éter

Assoma tua presença mais que marítima

Estrelas despenham-se em tua hora

E em teu medo mesmo que não as reconheçam

E nelas tua vida alcança altitudes já sonhadas na pura maça da infância

Ou nas primeiras letras em que o mundo sempre foi puro rebento de sol,

Pão ázimo ou qualquer ilusão palpável  nunca esquecida.

Por Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e professor da UNEB.

POR UMA RENOVAÇÃO MARXISTA DA TEORIA DA DEPENDÊNCIA

A Simon Bolívar

 “A posteridade de Marx ainda está muito longe de haver-se esgotado; é possível que na América Latina esteja apenas começando”

Enrique Dussel

“Escrevo para o povo ainda que ele não possa

ler a minha poesia com seus olhos rurais.

Virá o instante em que uma linha, a aragem

que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,

então o labrego levantará os olhos,

o mineiro sorrirá quebrando pedras,

o caldeireiro limpará a fronte,

o pescador verá melhor o brilho

dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,

o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio

do aroma do sabão, olhará meus poemas,

e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.

Neruda, Canto Geral

Podemos começar com uma afirmação peremptória: a teoria da dependência foi frutífera em analisar os efeitos da inserção da América Latina na economia mundial, e nisso continua atual e premente, mas, por não ter articulado a lógica dialética, faltou analisar as causas mais profunda que explicariam a situação de atraso econômico-social em que as formações periféricas, por injunções externas e internas, estão submersas.

André Gunder Frank, ao enfeixar os fatos centrais da dependência, leciona que: 1) a conquista coloca toda América Latina em situação de dependência econômica; 2) essa situação determina a posição, sempre subserviente, das classes dominantes, as quais ocupam o Estado e os demais instrumentos políticos para reproduzir essa dependência; 3) da estrutura de colônia e de classe resulta uma economia de exportação baseada na super-exploração; 4) a estrutura agrária e o modo de produção agrícola se transformam de acordo com as novas oportunidades e sempre submetidos às flutuações da demanda exterior.[1]

Já Ruy Mauro Marini, em Dialética da Dependência[2], mostra que a inserção da América Latina no comércio mundial se deve à injunção de figurar como fornecedor de produtos agrícolas, que são cruciais para o desenvolvimento das atividades industriais nos países do centro capitalista. Então, o que se chama de modo de produção agrícola é uma necessidade da economia mundial e não mera contingência. Não é novidade que a América Latina constitui o continente que mais fornece alimentos no mundo.

Marx, em O Capital, demonstra a correlação intrínseca entre produção industrial e a produção agrícola na dimensão espacial do sistema-mundo:

“A constante ‘transformação em excedentes’ dos trabalhadores dos países da grande indústria promove artificialmente rápida a emigração e a colonização de países estrangeiros, que se transformam em áreas de plantações das matérias-primas do país de origem, como, por exemplo, a Austrália tornou-se um local de produção de lã. Cria-se nova divisão internacional do trabalho, adequada às principais sedes da indústria mecanizada, que transformam parte do globo terrestre em campo de produção preferencialmente agrícola para outro campo preferencialmente industrial.”[3]

A inserção dependente na economia mundial, ao estar arrimada em trocas desiguais, portanto, constrange os países periféricos a explorar ainda mais o trabalhador como forma de compensar as perdas no plano internacional, constituindo uma estrutura de super-exploração. Urge compreender esse mecanismo a partir do conceito de mais-valia.

A compreensão, límpida, transparente e clara, do que é a mais-valia ocorre quando da distinção entre trabalho necessário e trabalho excedente. Desde Adam Smith até David Ricardo, o trabalho necessário é aquele que proporciona ao operário a contrapartida para manutenção de sua reprodução física. Não obstante, o trabalho coagulado na mercadoria sempre ultrapassa o necessário à manutenção do trabalhador. Leciona Marx:

‘’O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador labuta além dos limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio de força trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ela gera a mais-valia, que sorri ao capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. A essa parte da jornada de trabalho chamo de tempo de trabalho excedente, e o trabalho despendido nela: mais-valia (surplus labour). Assim como, para a noção do valor em geral, é essencial concebê-lo como mero coágulo de tempo, como simples trabalho objetivado, é igualmente essencial para a noção de mais-valia concebê-la como mero coágulo de tempo de trabalho excedente, como simples mais-trabalho objetivado. Apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extorquido do produtor direto, do trabalhador, diferencia as formações sócio-econômicas, por exemplo a sociedade da escravidão da do trabalho necessário’’[4] (MARX, Karl. O Capital: vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 168-9).

A mais-valia se divide em: 1) mais-valia absoluta, vinculada à jornada de trabalho e 2) mais-valia relativa, adstrita às questões técnicas da produção. Portanto, é possível a obtenção de mais-trabalho pela ampliação da jornada de trabalho ou pelo desenvolvimento de técnicas que permitam produzir mais em menor tempo.  Em razão do baixo desenvolvimento científico das formações sociais periféricas (mais-valia relativa), a única forma com que a super-exploração pode se manifestar é no plano da mais-valia absoluta, isto é, na ampliação da jornada de trabalho, que se dá das mais variadas formas[5].

A tese, ainda que adstrita ao plano dos efeitos, é correta e se faz evidente quando, em momentos de crise econômica, verifica-se a pressão de organismos internacionais para os países periféricos empreenderem mudanças legislativas no campo do direito do trabalho e da previdência social, corroendo-se os direitos de natureza sócio-econômicos para extração de mais-valia.

A necessidade de, no plano interno, extrair mais-trabalho, ligado à jornada de trabalho, também se deve à pressão externa para que não haja desenvolvimento científico nos países periféricos. Por isso, os teóricos da teoria da dependência ora a vinculam à questão da super-exploração- mais valia absoluta- ora a correlacionam à questão do desenvolvimento científico- mais-valia relativa.

Devemos acrescentar que a sobre-exploração envolve, sobretudo, a subsunção de formas arcaicas de produção, como no caso do trabalho escravo e até a prática da servidão[6].

Seguindo a linha desenvolvida por Enrique Dussel, podemos retomar a assertiva de que a teoria da dependência precisa ser retomada a partir da leitura global de Marx, o que consiste em identificar as categorias centrais do pensamento marxiano e aplicá-las rigorosamente aos contextos das formas sociais do capital-periférico subdesenvolvido. E aqui devemos reconhecer o grande mérito de Kant ao afirmar que as categorias são concebidas para serem aplicadas à experiência. Conforme Hegel salientava, o único erro de Kant é que a dedução das categorias é sempre abstrata e desarticulada da experiência. Em Marx, temos uma grande novidade epistemológica: a relação em espiral entre a lógica e a experiência história. As categorias são hauridas da experiência histórica, alçadas ao plano teórico e, uma vez aplicadas à realidade, servem para esclarecê-la desde que sejam rigorosas e voltadas à descrição crítica. O diagnóstico da teoria da dependência, no que concerne aos efeitos, é irreprochável. Mas cabe auscultar as causas mais profundas na perspectiva das categorias desenvolvidas por Marx. Ou para usar Mao Tsé-Tung: é preciso compreender o fenômeno a partir da contradição principal e não apenas da contradição secundária.

É preciso distinguir o dinheiro como dinheiro e o dinheiro como capital. Para Marx, a fórmula geral do capital é: dinheiro-mercadoria-dinheiro. O capital não se identifica inicialmente com dinheiro. O capital é o circuito que se inicia com o dinheiro, passa pela mediação do intercâmbio de mercadorias, para se consumar como dinheiro novamente. Capital, portanto, é o dinheiro que gera, produz dinheiro. Por isso, não é ociosa a discussão de Marx sobre os fatores da mercadoria, a saber: o valor de uso e o valor de troca.

O valor de uso consiste na utilidade que a mercadoria proporciona e não se confunde com o valor de troca. A distinção entre valor de uso e valor de troca se revela fecunda para demonstrar a diferença de perspectiva em relação aos valores da mercadoria decorrente da diferença no polo da relação de troca comercial.

A mercadoria interessa ao capitalista não pela utilidade que pode proporcionar (valor de uso), mas pelo valor de troca que ostenta. Inclusive, a distinção é crucial para compreender que o lucro, ou melhor, a mais-valia vem da exploração do trabalhador e não do intercâmbio comercial. A extração de mais-valia se dá na exploração do trabalho vivo.

Como parte do trabalho objetivado na mercadoria não é pago, o processo de circulação, na forma originária do capitalismo, no qual a mercadoria interessa apenas como valor de troca, é de fundamental importância para a formação de capital porque permite consumar a exploração do trabalho não pago ínsito à mercadoria.

A grande mutação, já entrevista por Lenin, é que a produção de excedente, decorrente do processo de circulação do capital, enseja uma grande concentração de capital excedente que se autonomiza e cria as condições para a produção autorreferente de dinheiro e sua exportação dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos.  Leciona Lenin:

“O que caracteriza o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo atual, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital”[7]

Marx já pressentira essa autonomização quando afirma que a fórmula do capital a juros é dinheiro-dinheiro sem a necessidade da mediação do processo de circulação de mercadorias. O cerne do capitalismo atual, na dinâmica do sistema-mundo, portanto, não é mais a exportação de mercadorias, mas a exportação de capitais.

O fetichismo do dinheiro autorreferente tem efeitos epistemológicos, circundando de mistério fenômenos como a inflação que, desde as categorias marxistas, são explicáveis. A inflação nada mais é do que uma crise na produção e intercâmbio de mercadorias que é apresentada como crise monetária[8]. Aqui se vislumbra o fetichismo do dinheiro autorreferente produzindo um ruído para evitar a compreensão cabal de um fenômeno. O domínio de setores estratégicos permite, por exemplo, a produção artificial de inflação, produzindo abalos nas economias dependentes, atingindo-se, especialmente, os setores populares[9].

Nos países desenvolvidos, produziu-se um grande excedente de capital que, sob a palavra ‘terna’ investimento[10], é aplicado nos países periféricos, servindo de dínamo para opressão de povos inteiros por meio do apossamento dos seus territórios e de suas riquezas.

Nos estudos da acumulação de capital, Rosa Luxemburgo, apesar de incorrer numa certa teleologia histórica, entrevê o modo como os empréstimos dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos são instrumentos do imperialismo:

“As contradições da fase imperialista se manifestam mais claramente nas contradições do sistema de empréstimos internacionais. Esses empréstimos são indispensáveis à emancipação dos jovens Estados capitalistas ascendentes e, ao mesmo tempo, constituem o meio mais seguro para os velhos países capitalistas colocarem os novos sob sua tutela, de controlar suas finanças e de exercer sobre eles uma pressão em sua política externa, aduaneira e comercial.”[11]

A própria assertiva se debate numa contradição e precisa ser mais compreendida. Não há como compatibilizar os termos da questão. Ou o capital estrangeiro constitui um meio necessário de desenvolvimento para os países subdesenvolvidos ou, ao contrário, constitui a engrenagem sutil da dominação imperial.

A economia burguesa dominante criou o mito de que o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos depende de capital estrangeiro, quando, na verdade, acontece o contrário. O que impede o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos é propriamente a dominação pelo capital estrangeiro cuja manutenção depende da reprodução da dependência, entrando-se num círculo vicioso. O capital estrangeiro promove a dependência e só se mantém pela reprodução da dependência.

Por isso, a busca, constante e permanente, pela dominação do campo político que, ao ser desprovido de autonomia, cria as condições para a reprodução da dependência. Para dizer da forma simples com que se expressam certos próceres do imperialismo: um país é dominado pela quantidade de capital estrangeiro que é investido nele.

Nos termos da teoria da dependência, o desenvolvimento do subdesenvolvimento, para retomar o termo de André Gunder Frank, envolve sempre a necessidade, dentre tantos efeitos, de os países desenvolvidos controlarem o processo político nos países periféricos para, especialmente, manietar o desenvolvimento científico, preservar o analfabetismo para produzir uma superpopulação relativa mais suscetível de formas de explorações mais intensas [12], fetichizar todas as formas de organizações que podem colaborar com a produção de uma esfera pública crítica, subsumir formas arcaicas de produção, como o trabalho escravo e servidão.

Ruy Mauro Marini, no texto citado, postula que a dependência está intrincada com a impossibilidade de os países periféricos desenvolverem o próprio processo de circulação. A saída da dependência seria, pois, criar as condições para a produção de um processo autônomo de circulação. A tese, mais uma vez, é correta apenas no nível do aspecto da aparência, mas, no que concerne à essência do fenômeno da dependência, não é satisfatória.

Leon Trotsky afirmava que a função histórica do capitalismo é o desenvolvimento das forças produtivas. Se analisarmos a asserção dentro do sistema-mundo em que a questão espacial centro- periferia emerge, veremos que a asserção é válida apenas para os países desenvolvidos. Uma das condições para a reprodução da dependência é evitar, de todas as formas possíveis, que os países periféricos desenvolvam suas forças produtivas, o que permitiria a produção de excedente, ensejando o equacionamento e a superação da dívida pública e até uma alteração substancial na divisão internacional do trabalho e do capital[13]. A desindustrialização nos países periféricos é um projeto deliberado da dominação imperial. A inexistência de um processo próprio de circulação é, pois, efeito da dominação.

A questão da dependência, portanto, está vinculada à questão da conversão dos orçamentos dos Estados periféricos em garantia do capital financeiro nacional e internacional[14]. Sejamos claro: nas formações sociais periféricas em que toda a história do poder colonial está orientada à dispersão das massas e das classes sociais subalternizadas, a única forma possível de transformação social se dá pela organização política para a conquista do poder do Estado[15]. O mecanismo da dívida torna os Estados periféricos estruturas incapazes de empreender as políticas públicas necessárias para debelar a dependência. Nesse contexto, o mecanismo da dívida pública externa ou interna cumpre o papel decisivo na submissão de um país ao capital financeiro nacional e internacional, retirando qualquer autonomia política voltada ao questionamento da dívida pública interna e externa e dos seus efeitos, impedindo a superação da dependência. A manutenção da dívida pública representa o mecanismo central da reprodução da estrutura colonial da dependência econômica.

Se aplicarmos a ideia dialética da influência recíproca entre causa e efeito, podemos afirmar que, no plano internacional, a própria eminência adquirida- que permite aos países desenvolvidos exportar capital- é decorrência do mecanismo da dívida pública. Alçados pelo mecanismo da dívida pública à condição de países desenvolvidos, só permanecem na condição de eminência se mantiverem inquestionável o mecanismo da dívida pública e dos efeitos decorrentes desta, especialmente na questão orçamentária[16].

Hinkellamert, ao criticar a teoria do imperialismo que coloca o cerne da dominação na exportação de capitais, tangencia a questão da dívida pública externa sob o argumento de que nunca houve exportação de excedentes por parte dos países desenvolvidos:

 “A própria teoria do imperialismo, desde Hobson, Bucarin e Lenin, caiu na cilada de crer que os países do centro transferem excedentes para os países da colónia, que hoje chamamos de Terceiro Mundo. Jamais o fizeram e jamais farão. No período de maior dinâmica do investimento estrangeiro direto nestas regiões, entre 1870 e 1928, a Inglaterra teve um saldo negativo ininterrupto em sua balança comercial, o que significa que importou excedentes e financiou seus investimentos estrangeiros diretos gigantescos através da movimentação de poupanças internas dos países nos quais investiu.[17]

O que lhe faltou foi justamente perceber o modo como se dá confusão entre dívida pública- externa ou interna- e o capital financeiro. Afora isso, toda a análise desse mestre continua vigente e atual. Em O Capital, Marx compreendeu o fenômeno claramente, afirmando:

“A dívida pública converte-se numa das mais poderosas alavancas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de uma capacidade criadora, o transformando em capital sem ser necessário que seu dono se exponha aos riscos e aborrecimentos que são inseparáveis do investimento industrial e mesmo de atuar como usurário. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois os títulos da dívida pública continuam a funcionar em suas mãos como se fosse dinheiro. A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu os agentes financeiros que funcionam como intermediários entre o governo e a nação. As parcelas de sua emissão que são adquiridas pelos arrematantes de impostos, negociantes e fabricantes privados lhes proporcionam o serviço de um capital caído do céu. A dívida pública faz prosperar sociedades anônimas, isto é, o jogo da bolsa de valores e nossa moderna bancocracia”[18].

É interessante notar que Marx insere o tema da dívida pública no terreno da acumulação primitiva do capital, deixando clara a relação entre o domínio imperial, capital financeiro e o mecanismo da dívida pública. A acumulação primitiva do capitalismo consiste num fenômeno heteróclito que envolve a supressão da base fundiária dos camponeses e dos povos originários, legislações draconianas, pilhagem dos bens dos Estados etc. David Harvey, apesar de ter trazido contribuições inestimáveis no esclarecimento e no desdobramento do conceito, não inseriu a questão da dívida pública- externa e interna- como elemento central da acumulação primitiva.

A exportação de capital não tem fins filantrópicos, mas objetiva ao incremento da acumulação de capital, isto é, a autovalorização do capital pela produção de mais mais-valia. Poderíamos até designar esse fenômeno como mais-valia internacional porque se sustenta na exploração de países inteiros.

No direito civil, nos direitos das obrigações, existe um instituto denominado confusão em que as figuras do credor e devedor se enfeixam na mesma pessoa, constituindo uma forma de extinção da obrigação. O mecanismo da dívida pública produz essa confusão. Dessa forma, os Estados periféricos se convertem em garantes do capital financeiro nacional (dívida interna) e internacional (dívida externa)[19], suprimindo-se qualquer possibilidade real de desenvolvimento econômico, lançando na opressão da fome e do desemprego povos inteiros que, se adquirissem autonomia política, poderiam desenvolver suas forças produtivas, estimulando formas sustentáveis de desenvolvimento que, respeitando o metabolismo ser humano e natureza, engendrariam novas de ser, novos modos de produção.

Já Kant, no texto Pela Paz Perpétua, afirmava que a inexistência de qualquer mecanismo de dívida na resolução de querelas entre Estados, ainda que oriunda de guerra, e o respeito incondicional à autodeterminação dos povos são condições básicas para a paz entre os povos. É de uma atualidade gritante.

Em Princípios de Filosofia do Direito, Hegel afirma que um povo entra para história universal quando engendra novas formas de ser que se imprimem de forma duradoura no tempo-espaço. Se os povos da América Latina e o Caribe derem uma solução racional à espinhosa questão da dívida pública- interna e externa- podem se inserir na história universal, alterando a divisão internacional do trabalho em prol do desenvolvimento econômico capaz de proporcionar bem-estar universal, conferindo materialidade à ideia de Kant de hospitalidade incondicional, deixando o imperialismo apenas como uma chaga vergonhosa da história do sistema-mundo.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e professor da UNEB.


[1] FRANK, André Gunder. Lumpen-bourgeoisie et lumpen-développement. Paris: François Maspero, 1971, p.20.

[2]Texto inserto em “América Latina, dependencia y globalización. Fundamentos conceptuales Ruy Mauro Marini. Antología y presentación Carlos Eduardo Martins. Bogotá: Siglo del Hombre – CLACSO, 2008”

[3] MARX, Karl. O Capital. Vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 62. A estrutura permanece a mesma e provoca a luta por terras agricultáveis.

[4] MARX, Karl. O Capital: vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 168-9.

[5] Na reforma trabalhista brasileira, a supressão das horas in itinere, a redução do intervalo intrajornada e o trabalho intermitente constituíram formas de extração de mais-trabalho. Além disso, decisões negando o acúmulo do adicional de periculosidade e de insalubridade contrariando as normas da OIT constituem, também, forma de extração de mais-valia.

[6] Caio Prado Junior, em Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, fala de várias formas arcaicas de produção como a meação. Conforme salientava Louis Althusser, no mesmo país podem conviver, ao mesmo tempo, vários modos de produção. É preciso estudar como o capitalismo, mesmo tendo por característica o trabalho assalariado, subsume modos de produção arcaicos.

[7] LENIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p.

[8] Fica evidente que são múltiplas as causas que podem gerar uma inflação como crise energética, indexação da economia, ou qualquer outro fator que afete a produção e o intercâmbio de mercadorias.

[9] Quando do golpe no Chile em 1973, Henry Kissinger dizia que era preciso fazer a economia gritar de dor.

[10] Investimento é capital, capital é dinheiro produzindo dinheiro, e dinheiro nada mais é que trabalho objetivado.

[11] LUXEMBURG, Rosa. L’accumulation du capital II. Paris: François Maspero, 1969, p. 89.

[12] Faltou à teoria da dependência, ao falar em super-exploração, relacioná-la à questão do trabalho qualificado como Marx já anunciava.

[13] Veja-se, por exemplo, o caso dos países do Leste Europeu que, sob o regime comunista, tornaram-se potências econômicas em apenas três décadas, mas que, no período de Guerra Fria, sofreram brutal desindustrialização.

[14] A ‘solução’ que determinados governos encontram para essa questão é a compressão orçamentária nos setores sociais e econômicos e no aumento da carga tributária que sufoca o setor produtivo. Evidente que são falsas soluções para o grave problema da dívida pública interna e externa. 

[15] O revolucionarismo abstrato, tão ao gosto da pequena-burguesia, costuma dirigir seus torpedos ao Estado, incorrendo no mais débil historicismo. O que caracteriza o pensamento dialético, dentre outras coisas, é o imperativo de historicizar o discurso. Historicizemos: quando Marx criticava o Estado criticava algo concreto: o brutal e repressivo Estado Prussiano. E tinha razão em fazê-lo. Havemos de concordar com David Harvey: a única estrutura de poder capaz de impor freios ao capital é o Estado. A repressão de todo movimento político de contradição antagônica na modernidade periférica tem a ver com a necessidade para o império de ter o monopólio do Estado com a finalidade de reproduzir a dependência.

[16] Isso fica claro quando se analisa o caso da Independência do Brasil 1882 em que se herdou uma dívida externa.

[17] HINKELAMMERT, Franz J. A dívida externa da América Latina: o automatismo da dívida. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.

[18] MARX, Karl. O Capital: vol. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 278. Destaques nossos.

[19] É preciso lembrar Mao Tsé-Tung quando fala da posição de classe. Qual a posição de classe dos economistas oficiais? Declino isso porque há muito tem surgido uma retórica de que a dívida externa, em alguns países, se converteu em dívida interna, o que, por si só, já é discutível e, mais ainda, não resolve nada porque o problema permanece o mesmo, mudando-se apenas os personagens. Na economia burguesa atual, impera a ideologia da não ideologia. Negar que um discurso é ideológico é uma ideologia. Se houvesse neutralidade axiológica porque o mesmo fenômeno em determinados lugares é inflação e, em outros, crise de abastecimento?