Arquivos mensais: novembro 2021

O CONCEITO DE NATUREZA NO MARXISMO

Da mesma forma que se atribui ao idealismo alemão o erro de conceder à natureza um determinado lugar para logo sublimá-la, diz-se que Marx e Engels concederam à natureza um lugar abstrato. Ao analisar as bases do pensamento metafísico, Habermas assinala:

“O próprio Marx não reflete sobre o nexo entre a natureza em si, natureza para nós e sociedade. A dialética da natureza de Engels, a ampliação do materialismo histórico para o dialético, tornou evidente a recaída no pensamento pré-crítico.[1]

A assertiva não se sustenta. Para demonstrar o equívoco, resgatemos a categoria de negação que figura, ao mesmo tempo, no plano epistemológico e no plano ontológico. O método dialético confere um sentido novo à negação. Negar, em dialética, significa, na verdade, em determinar de forma que uma coisa, ao se inserir num sistema, somente se expressa de acordo com os imperativos internos desse sistema, excluindo-se outras determinações possíveis. Por isso, significa entender a realidade não como objetividade morta, mas cingida pelo caráter processual-dinâmico em que a negação da negação revela o movimento das coisas.[2]

Conforme afirma Engels:

“Negar, em dialética, não consiste pura e simplesmente em dizer não, em declarar que uma coisa não existe, ou em destruí-la por capricho. Já Espinosa dizia: omnis determinatio est negatio, toda determinação, toda demarcação é, ao mesmo tempo, uma negação. Além disso, o caráter da negação obedece, em primeiro, à natureza geral do processo, e, em segundo lugar, à sua natureza específica. Não se trata apenas de negar, mas de anular novamente a negação. Assim, a primeira negação será de tal natureza que permite que seja novamente possível a segunda negação. De que modo? Isso dependerá do caráter específico do caso concreto. Ao se moer o grão de cevada, ou ao se matar o inseto, esta se executando, inegavelmente, o primeiro ato, mas torna-se impossível o segundo. Portanto, cada coisa tem um modo especial de ser negado, que faz com que a negação engendre um processo de desenvolvimento, acontecendo o mesmo com as ideias e os conceitos”[3]

Ao entender o sentido dialético da negação, é possível diferenciar o processo de trabalho do processo de valorização. Operando-se uma variação imaginativa em que se suprime mentalmente todas as formas de organização social, chega-se à essência do trabalho enquanto interferência teleológica na natureza para se obter os meios de existência. 

 O processo de trabalho consiste na eterna necessidade de mediação entre o ser humano e a natureza, independentemente da forma com que o trabalho é subsumido numa determinada formação social. Como Marx e Engels já tinham remarcado em A Ideologia Alemã:

“Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por qualquer outro critério. Mas os homens começam a se distinguir dos animais desde que quando começam a produzir seus meios de existência, passo este que é consequência mesma de sua organização corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua vida material.”[4]

Já o processo de valorização se expressa na forma com que cada formação social subsume o processo de trabalho[5]. Ou seja, na forma com que o trabalho é determinado em cada sociedade específica. No caso do capitalismo, o trabalho vivo é subsumido sob a forma de trabalho assalariado. Ao ocorrer apropriação dos meios de produção pelas classes dominantes, há uma ruptura entre o trabalhador e os meios de produção de forma que o trabalhador, privado que é dos meios de produção e da propriedade individual, é forçado a colocar a potência criadora de sua corporalidade viva como mercadoria. Por isso, há uma diferença muito grande entre a determinação do valor trabalho pelo salário e a determinação pelo trabalho vivo.

Uma intuição básica de Adam Smith é de que o elemento comum às mais variadas mercadorias é a quantidade de trabalho. O valor da mercadoria se coaduna com a quantidade de trabalho necessário para sua produção. Não obstante, não há coincidência analógica entre o valor do salário e a quantidade de trabalho expressa na mercadoria. A mais-valia, isto é, trabalho não pago, só se desvela quando, perscrutando a subsunção capitalista do trabalho, percebe-se a distinção entre a determinação do valor pelo salário e pela determinação pelo trabalho vivo. O processo de valorização do capital significa justamente a produção de mais-trabalho, de um excedente decorrente da exploração da força de trabalho. Nesse contexto, tanto o trabalho vivo quanto a natureza não são vista em si mesmas, mas como meios preordenados ao processo de autovalorização do capital, de produção de excedente.

O conceito de natureza em Marx, então, aparece quando da análise do processo de trabalho. Para Marx, a natureza é o corpo não orgânico do homem, meio natural que o condiciona e matéria com que, mudando as formas naturais, produz os meios de sua própria existência. Superando a dicotomia ocidental entre corpo e alma, alude às qualidades físicas e espirituais da corporalidade viva, podendo-se falar, também, nas qualidades físicas e espirituais da natureza. O cerne do pensamento ecológico de Marx é superar qualquer visão da natureza enquanto objeto, compreendendo-a na dinâmica da eterna necessidade de o homem se engajar no metabolismo da natureza para produzir seus meios de existência. Nas análises do marxismo, já se pressente todas as consequências da crise ecológica.  O que está em jogo, no momento de pandemia, é a ruptura no metabolismo ser humano e natureza, colocando-se em risco o futuro da humanidade. A tarefa, então, é criar um modo de produção que possa se apresentar como ecossistema salutar, permitindo o livre desenvolvimento de todos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e professor da UNEB.


[1] HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 49.

[2] O conceito de negação em Hegel é fundamental para superar a epistemologia positivista.

[3] ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 120-121. Foi com base na leitura do eterno mestre Enrique Dussel do conceito de negação que desenvolvemos a distinção entre valor e fonte criadora de valor. A meu ver, a melhor forma de homenagear um grande filósofo é fazer uso dos seus conceitos e leituras mais do que recitá-lo na literalidade. A natureza e o trabalho vivo são as fontes criadores de valor. No capitalismo opera-se sob a forma de propriedade privada (que não se confunde com a propriedade individual) e a mais-valia. Há que desenvolver a categoria de mais-valia fundiária, urbana e rural. Não é por acaso que o capitalismo só sobrevive à medida que socava as duas fontes criadoras de valor. Há que pensar novas formas de organização societária em que a relação entre trabalho e terra seja reinventada num sentido comunitário. A única questão filosófica importante é a reinvenção da vida.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 45.

[5] Sobre a categoria de subsunção, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

O SENTIDO ESTRATÉGICO DA CATEGORIA DE PROBLEMÁTICA EM ALTHUSSER

À Liga da Juventude Comunista

“Uma teoria é revolucionária precisamente na medida em que é elemento de separação e de distinção consciente em dois campos, na medida em que é um vértice inacessível ao campo adversário” Gramsci

“Política e tática são a vida mesma do partido” Mao Tsé-Tung.

Toda constituição de um campo de conhecimento obedece a um conjunto de pressupostos teóricos subjacentes que, muitas vezes, não é explicitado de forma que sua tematização remanesce obscurecida, seja por motivos teóricos, seja por motivos políticos. Para usar Heidegger, a todo pensamento corresponde um impensado que lhe é co-constitutivo e que se lhe antolha.

Se compreendermos por paradigma científico um conjunto de princípios teóricos compartilhados consensualmente pela comunidade científica a partir do qual se avalia a verdade ou não de um enunciado, podemos afirmar que uma ruptura epistemológica acontece quando há uma alteração nas premissas subjacentes que encartam e imantam esse mesmo conjunto e que, por sua vez, implode-o, gerando uma nova forma de conhecimento.

O trabalho da crítica, por sua vez, pode ser entendido como o processo de tematizar o que, num pensamento, permanece impensado, trazendo a lume as premissas subjacentes que lhe são inerentes ou desdobrando as premissas no sentido de lhe atribuir as consequências que se pretende evitar.

Michel Foucault, na magistral aula inaugural no Colégio de França, convertida no livro A ordem do discurso, mostra que um enunciado, ainda que verdadeiro, pode ser rejeitado pela forma com que se organiza um campo de conhecimento. Podemos acrescentar, tendo em vista as articulações entre a ciência e as formas de poder, que, por injunções políticas, um enunciado ou uma forma de saber pode ser objeto de campanhas terríveis e sutis de censura. O Capital de Marx, por exemplo, foi objeto de uma longa campanha de silêncio.[1]

Todo campo de conhecimento se baseia, pois, numa problemática. Conforme leciona Louis Althusser:

“A problemática de um pensamento não se limita ao domínio dos objetos tratados por um autor, isso porque ela não é uma abstração do pensamento como totalidade, mas a estrutura concreta e determinada de um pensamento, e de todos os pensamentos possíveis de um ato de pensamento”[2].

A problemática instaura um sistema de referências a partir do qual as questões e os problemas específicos de um campo de conhecimento são colocados. É um regime de visibilidade e uma tática discursiva. É um regime de visibilidade porque delimita o horizonte das perguntas e oculta o que, no calcanhar da problemática, insinua-se e que, se fosse reconhecido e teorizado, levaria a sua implosão teórica. É uma tática discursiva em cujos limites somente determinadas questões aparecem, interditando-se a emergência de problemas que não se enquadram nos limites de seu volume e espessura.

Não se trata apenas de forma de ocultação ideológica, mas da constituição de um campo de conhecimento estribado num consenso que instaura o segredo sobre determinadas questões. Tal consenso, ao obedecer a critérios não explicitados, indica uma posição frente ao mundo e aos problemas que se suscita.

Portanto, na problemática, somente determinadas questões aparecem, interditando-se outras. No caso da economia política burguesa, qual é o impensado que lhe é co-constitutivo?[3] Vejamos um enunciado de ninguém menos do que David Ricardo:

“Adam Smith, que definiu com tanta exatidão a fonte original do valor de troca, e que coerentemente teve que sustentar que todas as coisas se tornam mais ou menos valiosa na proporção do trabalho empregado para produzi-las, estabeleceu também uma outra medida-padrão de valor, e se refere a coisas que são mais ou menos valiosas segundo sejam trocadas por maior ou menor quantidade dessa medida-padrão. Como medida-padrão ele se refere algumas vezes ao trigo, outras vezes ao trabalho; não à quantidade de trabalho empregada na produção de cada objeto, mas à quantidade que este pode comprar no mercado, como se ambas fossem expressões equivalentes e como se, em virtude de se haver tornado duas vezes mais eficiente o trabalho de um homem, podendo este produzir, portanto, o dobro da quantidade de uma mercadoria, devesse esse homem receber, em troca, o dobro da quantidade que antes recebia.

Se isso fosse verdadeiro, se a remuneração do trabalhador fosse proporcional ao que ele produz, a quantidade de trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que esse mercadoria compraria seriam iguais, e qualquer delas poderia medir com precisão a variação das coisas.”[4].

Nas brilhantes análises de Marx vemos que, diante da heterogeneidade das mercadorias, o traço que lhe é comum é justamente a quantidade de trabalho; que o salário, no modo de produção capitalista, corresponde ao minimamente necessário à reprodução física do trabalhador[5]; que a mais-valia corresponde à parte de trabalho não pago. Pode-se verificar que todos esses corolários já estão presentes no enunciado citado.

Em O Capital, Marx, ao realizar uma leitura sintomal da economia burguesa[6], enuncia que os economistas burgueses viram algo que negaram porque seria implosivo para o próprio sistema de conhecimento que desenvolveram e, portanto, para a formação social que este conhecimento busca legitimar. É esse o papel da problemática: interditar um campo de conhecimento para interditar o questionamento da injustiça de uma determinada forma de organização societária. Não há campo de conhecimento que não esteja articulado com as graves questões políticas.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Numa carta a Engels, Marx tenta ele mesmo articular, sob um pseudônimo, a crítica do livro O Capital para suplantar o que chamou de ‘muro do silêncio’ em torno do livro. A peça teatral de Bertold Brecht “A vida de Galileu” busca demonstrar como um conjunto científico se defronta com as injunções do poder instituído, de como a verdade pode ser interditada por meio da perseguição dos cientistas.

[2] ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: La décoveurte, 2005, p. 65.

[3] Veja-se que um liberal de talento descomunal como Joseph Schumpeter afirma que as bases da economia são a terra e o trabalho. Se fizéssemos uso dessa arguta ideia, poderíamos fazer uma análise mais abrangente das crises econômicas. A inflação galopante nos EUA, por exemplo, está diretamente relacionada à grave crise energética por que passa o país.

[4] RICARDO, David. Princípios da economia política e tributação. São Paulo: Abril Cultura, 1982, 44-45.

[5] Uma das razões da ocupação estatal pela burguesia é ter o domínio da política sobre o salário mínimo. Uma política genuinamente de esquerda redunda em valorização do salário mínimo- que se deveria chamar salário básico.

[6] Sobre a leitura sintomal da economia burguesa clássica, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

A LUTA TEÓRICA CONTRA A ESPONTANEIDADE

“Eu vos dôo, proletários do planeta, cada folha até a última letra” A pleno pulmões, Maiakóvski

Lenin sempre ressaltava que o fato de um movimento político de contradição antagônica ascender ao poder não significava, por si só, a abolição das lutas de classes. Ao contrário, nesses momentos, mais do nunca é preciso articular a defesa ativa da disciplina coletiva diante da reatividade recrudescida das classes dominantes cuja articulação, não se deve esquecer, é sempre de natureza internacional.

Inicialmente, a ideologia entendida como um conjunto de representações acerca do social-histórico não tem uma natureza reativa, pois constitui o conjunto de articulações simbólicas a partir do qual o ser humano intelige e compreende as suas relações intersubjetivas. É mais o horizonte em que em estamos mergulhados do que algo sobre que meditamos.

Não há fato desprovido de pressuposições. Por estarmos sempre num contexto de articulação simbólica, não há experiência selvagem em que os sentidos se apresentam primários e fundantes. É esse o problema das ciências sociais. Na medida em que estudam um objeto já prenhe de sentido, enfrentam uma aporia inevitável: voltar-se ao estudo do significado já dado socialmente ou submeter a significação social ao modelos dos fenômenos físicos.[1]

Émile Durkheim, em livro clássico de metodologia social, coloca a questão no seu cerne:

“Os homens não esperam pelo advento das ciências sociais para conceber ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado, e a própria sociedade, pois não podiam passar sem elas para viver. É, sobretudo, em sociologia que estas prenoções, para retomar a expressão de Bacon, são suscetíveis de dominar os espíritos e de substituir à realidade. Com efeito, os fatos sociais não se realizam senão através dos homens; são resultado da atividade humana. Parecem, portanto, não ser mais do que o pôr em prática as ideias, inatas ou não, que trazemos em nós, mais que sua aplicação às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si. A organização da família, do contrato, da repressão, do Estado, da sociedade, aparecem assim como um simples desenvolvimento das ideias que temos sobre essa sociedade, o Estado, a justiça, etc. Por consequência, estes fatos e as suas análises parecem não ter realidade senão nas e pelas ideias que são os seus germes, e se tornam, desde logo, na matéria própria da sociologia.”[2]

Aqui tangencia a função duplamente hermenêutica das ciências sociais, mas se inclina por transplantar o modelo das ciências naturais às ciências sociais ao remarcar que se deve estudar os fatos sociais como coisas, na sanha positivista por uma noção de objetividade desprovida de movimento.

Guerreiro Ramos lutou contra esse corte positivista ao enfatizar que o pertencer à comunidade impede um sobrevoo absoluto sobre os dados sociais e que a sociologia da modernidade periférica envolve sempre o compromisso do sociólogo com a compreensão do real na dinâmica das contradições e que, por isso, só se desvela com o engajamento crítico. Mas essa é uma outra questão.

Se a ideologia tem um sentido orientador no mundo da vida, quando adquire um caráter opressivo? Quando as significações, imagens e representações camuflam, ainda que com dados tênues da realidade, as relações de poder; quando, por meio da construção de uma evidência familiar que forja um horizonte estreito de percepções, busca-se manipular os comportamentos para a manutenção ou retorno das relações de dominação. A ideologia figura, então, como uma filosofia espontânea na qual todos estamos submergidos.

Resulta fácil inferir que, em razão do domínio pelas classes dominantes dos mais variados agenciamentos coletivos de enunciação, para retomar um termo de Guattari, a ideologia das classes dominantes se torna dominante e passa a ter uma capilaridade nas mais variadas instituições, incluída a família, que não se deve nunca subestimar.[3]

A luta teórica, nessa encruzilhada, não é uma luta acadêmica: é uma luta sobre o sentido do social-histórico e sobre a orientação diante dos graves problemas políticos. A luta de Lenin contra a espontaneidade no movimento operário se insere nessa encruzilhada contra a primazia das representações burguesas, dialogando com a classe operária para articular o sentido do todo estruturado complexo para mais bem se orientar nas questões políticas e econômicas. Sem teoria adequada, a prática política torna-se cega e incapaz de produzir efeitos políticos adequados. Afirma Lenin:

“Por que- perguntará o leitor- o movimento espontâneo, o movimento pela linha de menor resistência, conduz precisamente à supremacia da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga pela sua origem do que a ideologia socialista, porque é mais completa a sua elaboração e porque possui meios de difusão incomparavelmente mais numerosos” [4]

É preciso acrescentar esse enunciado: a ideologia burguesa é mais antiga, possui meios de difusão muito mais numerosos e, hoje, possui muito mais capilaridade que na época de Marx[5]. O capital financeiro, ao monopolizar os agenciamentos coletivos de enunciação, tem mais condições de forjar a evidência familiar que interessa à manutenção das relações do domínio.

A assunção ao poder de um movimento de contradição antagônica que não significa a alteração dessa conjuntura da dinâmica da produção do real torna-o vulnerável à reatividade das classes dominantes que não pensam duas vezes em mobilizar todo o arsenal de meios de comunicação para engendrar o caos organizado para fins de desestabilização[6]. Cabe-nos o diuturno trabalho da crítica contra os sofismas, as frases e as palavras-de-ordens mais cotidianas e mais capilares.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB


[1] Em Teoria da Ação Comunicativa, Habermas, partindo dessa questão, afirma a natureza duplamente hermenêutica das ciências sociais, que são obrigadas a tematizar um dado que já tem uma significação social no mundo da vida.

[2] DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 44.

[3] Os meios de comunicação instantânea passam a ter um papel central nesse contexto.

[4] LENIN, Vladimir Ulianov. Que fazer: Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 92-3. Hoje, temos uma teoria crítica muito mais desenvolvida, mas que precisa de canais de popularização. Uma das primeiras medidas de Lenin foi a construção de um jornal de âmbito nacional para fazer frente à filosofia espontânea burguesa.

[5] O grande filósofo italiano Gianni Vattimo, ao enfatizar a força dos meios de comunicação na construção da realidade, costuma dizer que Marx, se vivo, seria muito mais pessimista diante de um projeto emancipador. É preciso entender o alerta no sentido de que não se pode acomodar e que o trabalho da crítica não terminou. Marx apenas preparou o terreno adequado para a nossa longa jornada, a longa marcha da emancipação.

[6] Slavoz Zizek afirma que, hoje, apenas a direita tem mobilizado a paixão política. Para um psicanalista, a afirmação é demasiado ingênua além de incorreta espacialmente.

BRASIL À DERIVA

Roger Batisde definia o Brasil como a terra dos contrastes. Esqueceu de completar que toda a história política do país pode ser resumida à tentativa, até então bem sucedida, de coarctar a emergência dos contrastes e evitar, por todos os meios, a irrupção da contradição antagônica. A independência de 1822 foi um acordo elitista do qual herdamos uma dívida externa sibilina; a República de 1889, conforme um cronista da época, ainda não veio; a mal chamada Revolução de 1930 foi um processo de modernização encabeçado por Getúlio Vargas com vista a subsumir os focos de tensão de forma a desarmar seu potencial crítico: como exemplo, reconheceu-se a liberdade de associação sindical, mas sob a batuta do Ministério do Trabalho, manietando-se o movimento sindical.

Na crise de 1964, a confluência de uma grande vitalidade intelectual e a presença de líderes populares capazes de aglutinar as forças do campo social foi castrada por um golpe empresarial-militar violento que privou o país de um pensamento orgânico cujos efeitos até hoje se fazem sentir [1]; A dita abertura política-que se convolou na constituição de 1988- não foi capaz de remover a colonialidade do poder que sempre secreta mecanismos de exclusão social, territorial e simbólica. Nesse contexto, os partidos são desprovidos de um pensamento da totalidade e são todos infiltrados pela burguesia. No Brasil, as cúpulas dos partidos de ‘esquerda’ são prepostos da burguesia. Parafraseando Mao Tsé-Tung, onde está a burguesia? A burguesia? A burguesia está no partido dos trabalhadores e nos partidos de ‘esquerda’.

O que marca a formação social brasileira é o fosso entre a mediação institucional, incluída a via partidária, e as classes sociais dominadas que, desprovidas de formas de organização capazes de formar um bloco de poder efetivo, mergulham numa verdadeira melancolia política e descrença, criando-se espaço para o falso messianismo das soluções simplistas, mas com força de catalisar parcela desses setores das classes dominadas. Por isso, as crises políticas brasileiras são, seguindo Guerreiro Ramos, sempre crises de orfandade política das classes dominantes decorrentes dos conflitos entre os interesses dessas mesmas classes dominantes.

Obedecendo ao materialismo histórico, verifica-se que o plano real indexou a economia nacional ao dólar, submetendo-a às flutuações e ao bruxulear da dinâmica internacional. Somado a isso, a entrega das riquezas nacionais e a onda privatizante dos setores cruciais criam as condições para crises econômicas cíclicas que, por sua vez, não são debeladas porque falta autonomia do campo político para empreender as reformas adequadas. Hoje, o conflito entre o capital financeiro e o capital industrial foi quase anulado de forma que as opções políticas majoritárias integram o campo do rentismo, mas, diante da indexação da economia, o setor do agronegócio sofre profundo abalo e a crise econômica tende a recrudescer, produzindo novas contradições no campo das classes dominantes. Para ler a dinâmica das lutas de classes, basta visualizar a política de juros do Banco Central e a brutal desindustrialização por que passou e por que passa o país. A religião se torna um fator político de alienação uma vez que alimenta a promessa de resolução mágica dos graves problemas econômicos e tende a se tornar, na dinâmica concreta, junto com a família, os fatores ideológicos mais sobressalentes.

O país encena a falsa solução dos problemas reais e sufoca a emergência democrática. Todos os instrumentos de canalização das lutas políticas são fetichizados, dos sindicatos aos partidos políticos, esvaziando-se as formas de organizações populares. O Brasil colonial vive de esvaziar os instrumentos políticos das classes subalternizadas.

A cena política, desde há muito, limita-se à proliferação de leis simbólicas que constituem a solução imaginária de problemas muito reais. A disseminação legislativa é o sintoma de uma formação social que, incapaz de mergulhar em seus problemas, finge resolvê-los mediante leis cuja eficácia depende de alterações drásticas da ordem econômico-social. O controle de constitucionalidade passa a ser um cenário de refrega política, inflacionando o Judiciário que, depositário das esperanças malogradas, passa a figurar como lugar de governo. O controle de constitucionalidade substitui a atividade de deliberação política coletiva. E não se faz política genuína por meio de controle de constitucionalidade.

 Não obstante, verifica-se uma grande emergência democrática que, mesmo em estado de crisálida, e, desde que encontre os instrumentos políticos adequados, pode significar a possibilidade de uma verdadeira emergência política transformadora. O Brasil é um país propenso à revolução, mas ainda não tem os instrumentos para erigir a força necessária à constituição de um bloco de poder popular, nacional e revolucionário.

A imprensa nacional, que funciona para a desorientação política, tem enfatizado a dualidade Bolsonaro e Lula.  É uma dualidade medíocre porque não expressa as pungentes contradições do país. Ambos representam o capital financeiro. São mitos de um país que perdeu a orientação política e se fantasia de democrático no ato mesmo de negar ao povo um horizonte político transformador. Nenhuma das opções, na medida em que não conseguem articular as soluções estruturais, não governam nem governarão para o povo de forma que, havendo organização, é possível, nos moldes da Revolução Sandinista, governar desde baixo, desde a emergência democrática.

Por isso, a primeira tarefa no Brasil é ampliar a democracia. Lenin, em Duas Táticas na Social-Democracia Na Revolução Democrática, livro que mudou a vida de Maiakóvski, relata:

“A própria situação da burguesia como classe, na sociedade capitalista, engendra inevitavelmente a sua inconsequência na revolução democrática. A própria  situação do proletário como classe o obriga a ser democrata consequente. A burguesia, temendo o progresso democrático que traz a ameaça do fortalecimento do proletariado, volta suas vistas para trás. O proletariado nada tem a perder exceto suas cadeias, e ganha com a democracia todo um mundo. Por isto, quanto mais consequente for a revolução burguesia nas suas transformações democráticas, menos permanecerá estreitamente encerrada dentro dos limites que beneficiam exclusivamente a burguesia, e mais garantias trará mais vantagens do proletariado e dos camponeses na revolução democrática.” [2]

Ampliemos a democracia. Criemos mecanismo de verificação da formação do poder. Libertemos a classe operária dos prepostos da burguesia. Superemos a melancolia política pela coragem do desespero, fórmula de Marx, que Agamben recentemente ressuscitou.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] O Golpe empresarial-militar de 1964 privou o país da melhor geração de intelectuais ( Ruy Mauro Marini, Nelson Werneck Sodré, Alberto Guerreiro Ramos etc) e a melhor geração de políticos da história (Jango e Leonel Brizola).

[2] LENIN, Vladimir Ulianov. Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática.São Paulo: Editora e Livraria Livramento, 1975, p. 38.