Arquivos mensais: outubro 2021

ANÁLISE CRÍTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO

“Os textos: em princípio, doação universal. Se sobre eles opinamos ou se os iluminamos de algum modo- se fazemos com que se ampliem em nós-, operamos sobre um patrimônio comum.”  Osman Lins

A teoria estruturante do direito, fundada por Friedrich Müller, oferece aportes metodológicos indeclináveis para toda teoria preocupada com a questão da interpretação/aplicação do direito. Pretende-se fazer aqui um breve estudo sobre as contribuições da teoria estruturante para a epistemologia jurídica e para a hermenêutica, reconhecendo os avanços e conquistas inegáveis e, ao mesmo tempo, fazendo as críticas necessárias para a evolução do saber. Nesse caso, as críticas são suscitadas pelo próprio caráter estimulante da teoria, buscando catalisar a energia interna que lhe é própria. Portanto, as críticas eventuais são, por si só, um elogio da teoria.

A base epistemológica axial da teoria estruturante é a necessidade de superação do dualismo metodológico entre dever ser e ser, norma e realidade, que está na base tanto do positivismo jurídico quanto do antipositivismo jurídico. Para demonstrar o quanto esse dualismo trespassa o debate jusfilosófico e o condiciona, gerando epistemologias e teorias interpretativas reducionistas, ora centradas numa validade abstrata, ora vinculadas à eficácia factual, irei tratar do modo como Kelsen e Hart desenvolvem o critério de identificação do direito a partir da questão-guia: como identificar uma norma jurídica válida?

Para Kelsen, em sendo o direito uma estrutura escalonada fundada no binômio fundamentação/derivação, a validade é a existência específica de uma norma. A norma, uma vez que foi produzida de acordo com o procedimento previsto para sua própria elaboração, passa a existir. A validade é, pois, a relação de pertinência abstrata ao ordenamento, independentemente do fato de a norma ser obedecida ou não. Nesse sentido, a validade é reduzida a um puro dever ser, neutro axiologicamente.

Já Hart parte da ideia de que um ordenamento, na medida em que fosse dotado apenas de normas primárias (que estatuem obrigações) padeceria de três defeitos: seria incerto, porque não teria uma norma de identificação da validade das normas; seria ineficaz, porque, na falta de definição dos órgãos que iriam averiguar o descumprimento de uma norma primária, a pressão social teria um caráter difuso e não institucionalmente organizada; seria estático, porque faltariam normas voltadas a expungir as normas obsoletas e a gerar novas normas acerca das novas situações emergentes da vida social-histórica. Para debelar esses defeitos, Hart prevê a existência de normas secundárias, respectivamente, de reconhecimento, de adjudicação e de modificação.

Verifica-se que, no âmbito das normas secundárias, a mais importante é a norma de reconhecimento, pois é a que permite a identificação do direito válido. Criticando a solução kelseniana da norma hipotética fundamental, Hart afirma que a validade do direito não pode ser uma questão de dever ser, mas uma questão de ser, isto é, de prática social. Por isso, para Hart, a norma de reconhecimento é uma prática social. Afirma:

“Porque enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido existir, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como um prática complexa, mas normalmente concordante dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato” [1]

É nos meandros da dicotomia epistemológica dever ser e ser que a teoria estruturante se insere. O direito, para não perder a base material, não pode ser reduzido à mera vigência entendida como pertinência abstrata à ordem jurídica, do mesmo modo, para não perder a normatividade, não pode ser reduzido a meros fatos, a uma suposta força normativa dos fatos.[2]

Entendendo que a normatividade, ao agasalhar a facticidade, tem referência à realidade da qual a metodologia não pode se esquivar sob pena de converter o direito em mera preexistência reificada, a teoria estruturante distingue programa da norma e âmbito ou domínio da norma. O programa da norma consiste no teor literal dos textos e o âmbito da norma na realidade materialmente determinante e determinada.

No que atine ao programa da norma, distingue entre texto e norma. O texto é a fórmula linguística que serve de baliza à interpretação, já a norma é o sentido que, diante do caso concreto, atribui-se ao texto. O processo normativo, nesse sentido, constitui a atividade complexa de converter textos em normas. A norma não é algo preexistente, algo subsistente em si, mas é fruto da interação entre a virtualidade do texto e o caso que lhe é constitutivo. Afirma Friedrich Müller: “Com efeito, a norma jurídica não existe, mas é criada pelo jurista decidente. Ele a cria não com base no virtual, mas, isso sim, partindo do virtual e com sua ajuda.”[3]

O texto é uma virtualidade porque necessita da mediação da leitura. Mas, no que concerne à noção de texto e a relação com o caso, Müller apresenta duas assertivas suscetíveis de crítica, quais sejam: 1) não é o texto que é vinculante, mas a norma produzida, 2) os fatos nunca obedecem a uma ordem linguística. Apesar da compreensão correta de que a norma não existe antes do processo de concretização, falta à teoria estruturante analisar a relação de continuidade entre o texto enquanto campo de ações linguísticas possíveis e o sentido adjudicado ao texto – que configura a norma.

Na medida em que a interpretação/aplicação necessita reformular o texto legislativo com outros signos mais desenvolvidos, mais amplos e mais claros, verifica-se uma continuidade expressa no que chamamos equivalência analógica[4]. O texto, portanto, ao instaurar um campo analógico, estrutura a sua própria leitura de forma que o intérprete está vinculado ao campo associativo e ao eixo temático analógico inerente ao texto[5]. O texto, portanto, vincula.

Outrossim, o texto não se encerra na mera textualidade, pois, já carrega em si toda uma facticidade própria; o texto, como salientava Heidegger, é um vir-a-ser-mundo, projetando uma facticidade que serve de modelo comparativo para o caso constitutivo. O texto, ao instaurar tipos, vem imbuído de predicados da realidade que servirão de paradigma para coleta dos dados empíricos que interessam ao campo jurídico. O caso concreto é interpretado com base nas similitudes com o vir-a-ser-mundo do texto.  

O texto tipológico instaura uma série factual que serve de paradigma para aferição, pela via da similitude, da série de casos submetida à analise judicial. Consoante assevera Jan Schapp:

“De importância, neste contexto, manifestamente o fato de o legislador, via de regra, somente decidir com certeza poucas séries de casos expressivos, deixando de resto ao juiz a tarefa de, partindo destas decisões certas, incluir na regulação da lei mais séries de casos não tão claramente decididas”[6]

A teoria da norma como juízo lógico (Kelsen) ou juízo disjuntivo (Cossio) ignora justamente a realidade material que embebe a norma e que é, concomitantemente, determinante e determinada. Aqui, já se tangencia na questão do âmbito ou domínio da norma que é sempre uma parcela da realidade sujeita ao recorte do esquema normativo. Leciona Friedrich Müller:

“O domínio da norma é um fator coconstitutivo da normatividade. Ela não é uma soma de fatos, mas um nexo formulado em termos de possibilidade real de elementos estruturais que são destacados da realidade social na perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma e estão, em regra, conformados aos menos parcialmente jurídico”[7]

Supera-se, então, o dualismo metodológico que não só produz uma epistemologia desconectada dos problemas reais, mas uma metodologia incapaz de entender a interpretação/aplicação do direito na intersecção da lógica jurídica e da experiência social e histórica. O ordenamento jurídico não é uma coisa em si, fechada, preexistente, e unívoca, mas um campo de ações interpretativas possíveis em que a luta pelos sentidos se produz. O que denominamos Arquitetônica Jurídica Analógica é uma empreitada voltada a unir lógica e experiência, criando categorias voltadas à formalização equânime do ordenamento para, vincando o campo comunitário das ações linguísticas possíveis, evitar a suspensão colonial do direito tão ao sabor da colonialidade do poder e salvaguardar a esfera pública das intromissões dos interesses privados[8].

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Ver: HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 121. Não cabe aqui discutir as aporias da norma de reconhecimento em Hart, mas apenas realçar que é uma questão em aberto, Para Hart, a norma de reconhecimento é como a regra de pontuação de um jogo que, mesmo orientando os jogadores, raramente é formulada de maneira clara. Dessa forma, a norma de reconhecimento serve de condição de sentido para a identificação das normas válidas e, ao mesmo tempo, é uma questão de fato.

[2] Um golpe nada mais é do uma facticidade que usurpa a normatividade e a axiologia ínsita à normatividade. A ressurgência da democracia na Bolívia, fruto das lutas populares, foi motivada, dentre outros elementos, pela atribuição ao governo oriundo do golpe do rótulo adequado de governo de fato, revelando-se, para todos, a carência de legitimidade normativo-constitucional. Remarque-se que uma das motivações do golpe era desacreditar o sistema eleitoral-analógico da Bolívia com vista a implantar sistemas autorreferentes de dominação. A luta política é, também, combate pelas palavras e pelos fatos. Sobre a relação necessariamente dialética entre fato e norma no plano constitucional, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes. Pensar desde a América Latina: a emergência de novas heteroutopias. Paulo Afonso, Oxente, 2021, capítulo 1.2, A constituição é o nome de quê?.

[3] MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59.

[4] Sobre a relação de equivalência analógica entre o texto de chegada e o texto de partida, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018. Na América Latina, o pensamento analógico já vinha sendo desenvolvido brilhantemente pelos filósofos Enrique Dussel e Mauricio Beuchot. Não haveria Hermenêutica Jurídica Analógica sem a base conceitual desenvolvida por esses dois grandes mestres. Talvez por não conhecer o pensamento analógico latino-americano, Müller, apesar dos avanços, tenha se enredado em muitas aporias.

 

4 SCHAP, Jan. Problemas fundamentais da metodologia jurídica. Porte Alegre, SAFE, 1985, p. 19. A Arquitetônica Jurídica Analógica permite uma refundação da teoria do precedente e a compreensão pouco divulgada de que os fatos também são interpretáveis embora um fato não se identifique imediatamente, como quis Nietzsche, com a sua interpretação.

[7] MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59.

[8] A suspensão colonial do direito se dá quando, pela corrosão do devido processo legal, se persegue injustamente o povo ou intelectuais e líderes populares e, também, quando se protege os apaniguados da colonialidade que, incorrendo em crimes, permanecem, sob a complacência das instituições, impunes. A Hermenêutica Jurídica Analógica também combate leis com rarefação discursiva que, ensejando a apropriação privada da linguagem, permitem a injusta persecução penal de pessoas eleitas como inimigas. Na verdade, trata-se de não leis. O ato patriótico norte-americano é exemplo gritante de não lei.

SOBRE A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ANALÓGICA ESTRUTURAL

“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.”

Gregório de Matos

Lourival Vilanova alertava que, ao usar a palavra direito, era necessário distinguir o direito como atividade de cognição sistemática das normas do direito enquanto ordem coativa: distinguir a linguagem científica, que descreve as normas, da linguagem prescritiva das normas jurídicas mesmas. Noutras palavras: diferenciar as proposições científico-descritivas das proposições deôntico-normativas.

A questão se torna mais complexa quando se trata de conferir unidade ao sistema jurídico. Diante da pluralidade inevitável das normas, como dar consistência axiomática ao sistema, remontando-se toda a pletora de normas a uma única e mesma fonte erigida em chave-mestra- que sela a unidade do sistema? A teoria pura do direito de Kelsen intenta resolver a questão mediante a hipótese da norma hipotética fundamental.

Para Kelsen, o direito tem elementos e estrutura. Os elementos são identificados nas normas jurídicas e a estrutura decorre da natureza das relações entre os elementos. Vê-se que os elementos não se confundem com a estrutura, mas a maneira com que os elementos se relacionam forma a dinâmica intrínseca da estrutura. Que tipo de relação as normas entretecem entre si? Na visão da teoria pura, as normas se relacionam por uma relação de fundamentação-derivação: uma norma encontra seu fundamento de validade em outra, isto é, foi gestada conforme a forma procedimental definida por normas de escalão superior.

O sistema, portanto, tem uma estrutura escalonada de forma que uma norma encontra seu fundamento de validade em outra norma. Aqui, depara-se com o grave problema lógico da regressão ao infinito. No ato de remontar uma norma inferior a uma norma superior, ao chegar-se, mediante a regressão, à primeira constituição, abica-se nos confins do ordenamento, emergindo a questão central: em que norma se baseia a constituição?

Kelsen responde à aporia, admitindo a hipótese de uma norma hipotética fundamental, norma que não é posta, mas pressuposta logicamente, figurando como condição gnoseológica de toda ordem jurídica. Se o direito é uma ordem coativa, fundada em normas, como pode ter por fundamento uma norma hipotética não positivada? Não incorre numa contradição insolúvel?

Os juristas influenciados pelo positivismo lógico engendraram uma interpretação engenhosa da norma hipotética fundamental. Para fugir a crítica da contradição performática da hipótese de uma norma hipotética fundamental, fazem a distinção entre condições de sentidos– do plano da metalinguagem- e as enunciações significativas– do plano da linguagem-objeto. As proposições que funcionam como condições de sentido pertencem a nível diverso das enunciações significativas.

A norma hipotética, ao estar no plano da metalinguagem, cria as condições de sentido para existência específica das normas, não figurando no plano das normas mesmas de forma que o argumentado da contradição é superado. Para o positivismo lógico, só há contradição entre proposições do mesmo nível.[1] Os enunciados de níveis diferentes são autorreferentes, aplicando-se apenas no âmbito do próprio plano, e, por isso, não geram contradição.

Podemos recortar desse instigante debate a seguinte premissa: a ciência jurídica cumpre papel decisivo na formalização sistêmica dos dados normativos. O sistema jurídico, nesse sentido, seria uma função da cognição científica e não uma situação empiricamente já dada.

Dentro dessa lógica, sem negar a dialética entre o modelo teórico e os dados empíricos, toda interpretação jurídica envolve sempre uma atividade de formalização lógica da estrutura jurídica. Se adotarmos o modelo teórico da linguística, podemos definir a estrutura como sistema diferencial, isto é, como um jogo de oposições e de relações internas de dependência[2].  Ao gizar a interpretação estrutural, deve o intérprete inserir, conforme declinei no livro As Antinomias do direito na modernidade periférica, o texto na rede intertextual a que pertence, a qual tem que ver com o horizonte do eixo temático para remarcar as similitudes e diferenças entre os elementos.

Deve-se, portanto, agrupar os temas de acordo com o eixo temático. Enquanto na interpretação textual, o critério que sobressai é o da equivalência analógico- linguística entre o texto de chegada e o texto de partida, na interpretação estrutural, o critério remonta à teoria interpretativa de Santo Agostinho, para quem uma interpretação correta de um texto sempre se confirma em outras partes do texto.

Na interpretação estrutural, as relações de dependência são exaltadas para evitar a alteração do sistema, preservando-se a coerência interna. Aqui, a articulação do eixo temático é crucial para manutenção da intangibilidade do ordenamento. Isso porque, havendo a mudança de uma parte, muda-se todo o ordenamento.

Exemplo dessa deturpação da estrutura sob o pretexto de defendê-la se deu no julgamento do Habeas Corpus de numero 126.292-SP, no Supremo Tribunal Federal, quando, criando-se a oposição inexistente entre a regra da presunção de inocência e a efetividade processual, simplesmente, em nome de uma suposta efetividade, anulou-se o texto normativo que consagra a presunção de inocência. Por meio de falsa interpretação estrutural, revogou-se uma norma do sistema normativo, alterando-se, por meio de interpretação, todo sistema jurídico. Outro exemplo se deu no julgamento da Medida Cautelar na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 5889- DF em que se declinou a oposição do voto impresso com o sigilo do voto, suspendendo-se a norma que consignava o voto impresso.  Fazendo-se a inserção da regra da presunção e do voto impresso no eixo temático próprio, verifica-se que o sistema confirmaria a higidez das normas. O sentido estrutural serve, em regra, para confirmar o sentido textual. A importância da metodologia é notória e evidente, pois, mediante critérios rigorosos, permite distinguir uma falsa antinomia de uma verdadeira e, sobremodo, uma formalização adequada e correta do ordenamento jurídico.

Portanto, a formalização empreendida deve ser feita de maneira a conferir maior coerência interna ao sistema e não lhe derruir a consistência mediante a criação falaciosa de oposições e de falsas antinomias para, mediante o cotejo entre normas que estariam no mesmo eixo temático, dar maior peso a uma em detrimento da outra. No Brasil, infelizmente, quando se quer negar aplicabilidade a uma norma vigente coerente com a axiologia do sistema jurídica, cria-se, artificiosamente, uma oposição com outra norma, para, diante de uma falaciosa concordância prática, dar primazia a norma que faz o intento prévio do intérprete, arruinando-se, por meio de errônea interpretação estrutural, o sentido literal do texto normativo que se quer negar aplicação. Uma forma sutil de revogar, pela interpretação, normas vigentes.[3]

 Aristóteles, ao analisar o sentido literal, declina:

“Há três modos ligado à homonímia (equivocação) e à ambiguidade: 1) quando a expressão ou nome indica propriamente mais de uma coisa, como aetos e cuon; 2) quando habitualmente empregamos uma palavra em mais de um sentido; 3) quando uma palavra apresenta mais de um significado, em combinação com uma outra palavra, ainda que isoladamente apresente um só significado’’[4]

Da mesma que uma palavra que ostenta sentido definido isoladamente, ao ser oposta a outra, mergulha na equivocidade, corroendo-se seu sentido analógico, ao criar falsas oposições entre as normas, produz-se uma equivocidade artificial, sendo que, por uma ponderação ad hoc, revoga-se uma norma que, uma vez lida de forma correta, permaneceria íntegra no ordenamento. Ocorre, portanto, no plano estrutural, uma apropriação privada da linguagem, usurpando-se os sentidos estabelecidos pela comunidade política no exercício do poder constituinte. A apropriação privada da linguagem, no plano da interpretação da constituição, é uma forma usurpar o poder constituinte de titularidade exclusiva do poder popular.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Sobre esta inquietante questão ver: WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, especialmente o capítulo II. No debate que tivemos, demonstrei minha discordância da solução apresentada porque, mesmo afirmando que a norma hipotética fundamental é pressuposta, Kelsen, ao afirmar que ela se enfeixa na proposição ‘’deve obedecer tudo o que prescreve a Constituição’’, conferia-lhe natureza deôntica: situava-a, então, na ambiguidade entre cognição e deontologia. Concordando com Alf Ross, já afirmava que a teoria pura do direito era uma espécie de jusnaturalismo conceitual, tese que ele dizia professar também. 

[2] Sobre a aplicação do método ao estudo dos mitos, ver a Antropologia Estrutural de Claude Lévi-Strauss.

[3] Mais uma vez, revela-se fecunda a teoria do cálculo dos predicados não só para a delimitação da moldura analógica, mas das possibilidades estruturais do ordenamento pelo balizamento adequado das antinomias reais, desmascarando-se, outrossim, as falsas ponderações que se lhe esgarçam a coerência interna. O papel da Arquitetônica Jurídica Analógica, cuja ossatura já desenvolvi no livro As Antinomias do direito na modernidade periférica, é a formalização escorreita do ordenamento, garantindo-se uma aplicação, objetiva e correta, do direito.

[4] ARISTÓTELES. Órganon. São Paulo: Edipro, 2005, p. 550. Destaques nossos. O pensamento holográfico, desde que subtraído à mesmidade e desde que engajado na analogia, pode ser fecundo na análise da intersecção dos três níveis básico de toda interpretação: textual, estrutural e histórico. Observe-se que a apropriação privada acontece em todos os níveis, mas de forma específica a cada nível. Vejamos um exemplo de apropriação privada no nível histórico. Cajetan, intérprete de Tomás Aquino, mesmo desenvolvendo a analogia no plano ôntico, trouxe colaborações que, aplicadas ao campo jurídico, contribuem para a construção de uma hermenêutica jurídica consistente. Cajetan vislumbra vários tipos de analogia. Mesmo a mais tênue, a analogia por desigualdade, confere critérios seguros para a interpretação jurídica. Saudável se predica de vários corpos, mas alguns são mais saudáveis do que outros, afirma Cajetan. Nesse sentido, o predicado saudável tem matizes diversas a depender do sujeito. Em várias decisões jurídicas, surge a discussão se aeronaves e embarcações se subsumem ao conceito de veículo automotor. Aplicando a analogia por desigualdade, verifica-se que, não obstante as diferenças entre um avião e um carro, ambos se enquadram no âmbito da analogia por desigualdade, isto é, pertencem ao mesmo gênero de forma que decisões que artificiosamente colimam extrair uma espécie do gênero a que pertence constituem forma de apropriação privada da linguagem. Cabe remarcar que a não aplicação rigorosa da mais tênue das analogias- a analogia por desigualdade- gera inúmeros prejuízos ao interesse geral. No Recurso Extraordinário 379572, no Supremo Tribunal Federal, a invocação da interpretação histórica foi equivocada porque o que a caracteriza, em regra, é o caráter diacrônico- o desvelamento de novas possibilidades sígnicas sem corroer o sistema, realçando-se o sentido textual e intertextual- e não o sincrônico. Aqui o sentido histórico diacrônico permite uma interpretação mais adequada do que é veículo automotor, conferindo ao texto sentido adequado. Um nível reforça o outro. No caso da apropriação privada da linguagem, sempre um nível interfere erroneamente no outro. Nem precisaríamos de reforma tributária, bastaria aplicar com o rigor o método hermenêutico.

LACÔNICAS TESES  SOBRE O MARXISMO

Por que o marxismo pode renascer?

Marx dizia que a realidade viva vale mais que mil programas. O pensamento marxiano não é um conjunto apriorístico sem contato com a realidade viva.  O marxismo perde força quando se desconecta da realidade viva, torna-se uma caricatura vazia do que é o horizonte incontornável da pretensão crítica.

Quando o marxismo entende a questão nacional como questão central da geopolítica, torna-se fecundo. Os textos de Marx sobre a imbricação da causa operária e causa nacional na Irlanda são paradigmáticos. Nacionalismo não é provincialismo impotente, mas afirmação do direito de um povo estabelecer sobre seu território a livre determinação;

Quando o marxismo entende a religião como fator político, torna-se fecundo. Marx criticava a religião que se servia de ilusão para uma condição que só poderia ser transformada sem qualquer apego à ilusão. Quando afirma que a crítica da religião é premissa de toda crítica quer enfatizar a religião como sintoma das condições sociais e econômicas. A hermenêutica, enquanto ciência da compreensão de textos, surge, no século XVI, no contexto dos conflitos de interpretação decorrentes da reforma protestante. Não é por acaso que Engels, no livro sobre as revoltas camponesas na Alemanha, vê nas interpretações teológicas do líder religioso Thomas Münzer – que se opunha a Lutero- manifestação das primícias do socialismo: para o teólogo anabatista, que liderou movimento pela apropriação comunitária das terras, a igualdade é o reino dos céus na terra. A teologia é também um campo de luta. A Revolução Iraniana, consumada em 1979, é a prova mais cabal da importância política da teologia.

Quando o marxismo abandona de vez a primazia do culturalismo e se centra, como ponto de partida,  na análise do modo de produção, torna-se fecundo e floresce. A economia é fator determinante em última instância, sem desconsiderar a correlação interseccional com os outros subsistemas;

Quando o marxismo entende que o direito e estado não são blocos monolíticos, mas lugares de mediação do social-histórico e, portanto, campos de lutas de classes, podendo adotar novas compleições libertárias, torna-se fecundo;

Quando o marxismo consegue aliar lógica e história, teoria e prática, numa unidade indissolúvel, torna-se fecundo e capaz de contribuir, decisivamente, na libertação dos povos. 

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Ode a Lima Barreto

Agora te compreendo, irmão,

sob teu rosto de brasileiro atormentado

rangem as formas vulcânicas e lâminas que

abrirão o porvir;

Agora te compreendo, irmão,

e sei que tua deliberada simplicidade e teu punho destro

lançaram contra ti os escravos escravos e os patrícios;

Agora te compreendo, irmão,

que o teu francês não era empolação

era a necessária assertiva da igualdade das inteligências;

Agora te compreendo, irmão, embora te quisesse mais firme e mais forte, arrostando os vórtices e, empertigado, segurando ainda mais o facho da liberdade;

Agora te compreendo, irmão, embora te quisesse mais feliz, mas sei que um país medíocre aprecia matar a viva invenção e, por isso, hei de te compreender mais e desenterrar tuas cartucheiras, projéteis e irisadas-iradas canções de diamantes e éter.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.