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SOBRE O MÉTODO DE PAULO FREIRE
“A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche”
Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel.
Para Paulo Freire, não há como apartar o processo de aprendizagem e de alfabetização da crítica. A apreensão das palavras não se dá no vácuo, fora da necessária contextualização. O ato ler, quando adstrito à neutralidade axiológica, é alienante. Já a leitura, feita no entrecruzar da palavra e do mundo, envolve a apreensão crítica da realidade.
Se Husserl propunha uma variação imaginativa entendida como a imaginação de um determinado objeto de estudo em todos os contextos possíveis para apreensão de sua essência, Paulo Freire, por um processo metonímico, buscava por inserir a palavra na contiguidade político-social, articulando o processo de alfabetização no contexto prático do aprendiz, alargando o horizonte até a percepção das coordenadas político-sociais que caracterizam uma formação social.
Entendendo a relação dialética entre palavra e mundo, buscava superar a forma alienante de alfabetização em que as palavras são emanadas de contextos abstratos, desconectados da realidade em que o aprendiz está inserido, esvaziando-se o ato de ler da potência política criadora que lhe é constitutiva.
Desde Jakobson, a linguagem tem dois eixos: 1) o metafórico -da similitude- e o metonímico- da contiguidade.[1] É próprio da análise crítica enfatizar não o processo metafórico, mas o metonímico, ou seja, as relações topológicas de vizinhança, realizando-se um processo contrário à fetichização, desvelando-se, no cotidiano, os elementos críticos da realidade. Ao alfabetizar um pedreiro, escolhendo-se a palavra ‘tijolo’, todos os elementos da produção do objeto até as relações de produção são compreendidas a partir da palavra. Aí já se desvela que alfabetizar é sim um ato político. Toda a experiência do aprendiz é convocada, pronunciada de forma a expressar-se numa forma de conhecimento, numa apreensão pela palavra do que em vivência está em outro nível de aprendizado. Um saber, para usar o termo de Sartre, oriundo do cogito pré-reflexivo. No ato de ler, dentro da perspectiva crítica, as pré-estruturas de apreensão pré-temática do mundo são trazidas à tona e mobilizadas para a crítica.
Karl Marx, quando analisa o fetiche da mercadoria, quer mostrar que um objeto, ao ser apreendido fora das coordenadas que lhe deram ensejo, produz efeitos alienantes e manifestos numa verdadeira fantasmagoria objetiva de forma que as relações de produção são visualizadas como relação entre duas coisas inanimadas e a própria relação social é fantasiada objetivamente como relação entre coisas. A alienação, por mais que distancie os seres sociais de sua realidade, integra a própria realidade, constituindo uma objetividade fantasmagórica. Por isso, a importância do trabalho crítico para, desfazendo a fantasia ideológica, revele o real.
A crítica, em Kant, envolve a análise das condições de possibilidade do conhecimento. Em Marx, significa, inicialmente, remontar todo o processo social às condições sócio-históricas que lhe engendraram. Nesse sentido, o livro “A Miséria da Filosofia” é exemplar, pois, critica o procedimento de Proudhon de reduzir um modo de produção e sua forma complexa a dois sujeitos abstratos, a saber: o produtor e o consumidor. Proudhon analisa a produção, olvidando as condições históricas que a engendraram. Esquece, pois, a produção histórica do modo de produção.
A ideologia significa justamente essa ilusão objetivamente explicável. Mesmo sendo ilusão, contém elementos da realidade a que alude e, nesse aludir, traz os rastros das condições de sua própria explicação. Nisso, a análise crítica, ao fazer o mergulho nas condições do entorno da ilusão ideológica, revela a estrutura mesma do mundo. Nesse contexto, o método de Paulo Freire é de natureza eminentemente crítica. No superar a visão mágica da palavra, revelando-se as relações de contiguidade social no ato de alfabetizar, acolhe a pronúncia do aprendiz, revelando-lhe o saber que já detinha em outro nível. O aprendiz, já sabendo, ao entrar no universo da palavra, politiza-se, descobre as relações de poder que engendra sua condição, articula o mundo de forma a superar o fatalismo que quer fazer da vida um lugar de resignação.
A premissa básica de Paulo Freire, na linha de Gramsci, é que todo cidadão é filósofo, seja porque, ao viver em sociedade, incorpora um conjunto de representações, seja pelo aprendizado da linguagem, a qual adensa sempre uma visão de mundo: a linguagem é um sistema modelizante. Partindo dessa premissa, rompe com a visão aristocrática para o qual o conhecimento é uma relação hierárquica em que o aluno de forma passiva recebe as luzes do sábio entronizado. Parte, pois, da igualdade das inteligências e da necessidade de romper as distâncias entre o intelectual e o povo.
O ódio a Paulo Freire se deve à premissa teórica que, partindo da relação dialógico-crítica, agasalha uma viva paixão pela igualdade. No ato performático de apostar na igualdade das inteligências se produz efeitos democratizantes, desvelando-se que o ato de comunicação, uma vez imbuído de dialogicidade, acolhe o outro excluído como legítimo produtor do próprio conhecimento e construtor da própria emancipação. Isso também tem claros efeitos políticos. Na modernidade periférica, a colonialidade de poder, por meio dos aparelhos ideológicos do Estado colonizado e colonizador, embebe as formas sociais de visões hierarquizadas para produzir o efeito ideológico de naturalização do patriarcalismo, do racismo e das injustiças econômicas. Não se produz tantas desigualdades e tantas contradições sem a indução de imagens hierarquizantes das relações sociais produzindo efeitos de naturalização da distribuição colonial injusta dos lugares e dos bens. No ato de ler e de alfabetizar, Paulo Freire descobre os caminhos pelos quais se podem encontrar possibilidades de emancipação e do desnudar de como as hierarquias produzidas são frutos das instâncias de deliberação e resultado interacional da dinâmica sócio-econômica.
Conforme Afirma Althusser:
“Na história da cultura humana, nossa época ficará marcada pela prova mais dramática e mais laboriosa de todas, a descoberta e a aprendizagem do sentido dos gestos mais simples: ver, escutar, falar e ler – esses gestos que põem os homens em relação com suas obras e essas obras atravessadas na garganta que são ‘ausências de obras’ ‘’[2]
O que Paulo Freire articula, de forma inusitada, é a possibilidade daqueles cujas gargantas tinham como única permissão emitir gritos guturais ascender, desde sua própria experiência com o mundo, à leitura do mundo numa obra crítico-libertária. Aqueles, cujas expressões das injustiças sociais moravam sempre numa interjeição pungente e muda, desabrocham na plenitude da palavra.
Juntamente com Althusser, Paulo Freire foi um dos que mais contribuíram para a compreensão do ato ler que, deixando de ser uma mera execução formal de signos, passa a ser um ato político de compreensão do modo como uma formação social funciona, desnudando-se seus mecanismos de exploração ideológica, política e econômica.
Se o vir à palavra que, segundo os gregos, conforma o homem se opõe à linguagem gutural pelo qual aos rostos sofridos expõem ao ser os estertores das formações sociais excludentes, uma vez vencido no oprimido o opressor que pode hospedar, o vir à palavra vem entremeado da crítica, da emancipação que consiste em dizer a palavra no engajamento da compreensão crítica da realidade. Se à ordem injusta interessa reduzir os protestos do povo à interjeição muda, Paulo Freire, apostando na igualdade, faz da alfabetização um ato de partilha crítica em que os oprimidos se descobrem portadores da chave da própria emancipação na partilha comum de um possível mundo justo já partilhado nas armas da crítica.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] Há que fazer estudos sobre a primazia das metonímias no discurso crítico. No escritor crítico-realista Graciliano Ramos, por exemplo, a presença das metonímias é abundante. Realce-se que tanto a metáfora quanto à metonímia são analógicas. Sobre o sentido analógico do signo, ver o capítulo 2, 3 e 4 da obra: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.
[2] ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Etienne; ESTABLET, Roger; MACHEREY, Pierre; RANCIÈRE, Jacques. Lire Le Capital. Paris: La Découverte, 2008, p. 6.
A fabulação do sangue
O verde sonhou-se
E as águas provaram do sabor de iniciar
Quando da criança a régia vivificação
Encetou corolas, vinis, canções cheirando a erva
Fabula-se a vida na palavra e no vinho
No sangue a rutilar o precioso húmus das origens
Porque de constelações famintas ressuscitamos o mel
Na seiva que fustiga o fogo
Elabora-se o trigo, a mesa, a partilha
As mãos amanham-se, fecundam a própria idéia de fecundação
A beleza em saber-se grão pequeno : manancial de surpresas;
As pupilas afagam abluções
Reescrevendo a árvore
suscitando o arco onde remansa o engenho
Indígena vida: o açafrão convola-se com o lume do cacau
O fruto doura o sol e rebrilha-se incendiando os pés que o afagam
De: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e Professor da UNEB.
IMPERIALISMO, DEPENDÊNCIA POLÍTICA E ECONÔMICA E AS LUTAS DOS POVOS PELOS BENS COMUNS
“Se eu sou, tu és”( São Paulo)
Karl Marx, quando analisa as formações sociais capitalistas, mesmo partindo da análise da mercadoria enquanto aparência da riqueza, já registra a tendência do dinheiro em se distanciar do processo de produção de mercadoria e em assumir uma autonomia excessiva. Em O Capital afirma:
“O dinheiro afasta as mercadorias constantemente da esfera da circulação, ao colocar-se continuamente em seus lugares na circulação e, com isso, distanciando-se de seu próprio ponto de partida’’ [1]
O capitalismo, no estágio atual, se caracteriza pela autonomização completa da forma-dinheiro de tal forma que os bancos, abandonando a condição de meros intermediários nos pagamentos, passam ao monopólio de praticamente todo o capital-dinheiro. Consoante afirma Lenin:
“À medida que os bancos se desenvolvem e se concentram num número reduzido de estabelecimentos, eles convertem-se de modestos intermediários que eram, em monopolistas onipotentes que dispõem de quase todo o capital-dinheiro do conjunto dos capitalistas e de pequeno patrões, bem como da maior parte de meios de produção e das fontes de matérias-primas de um ou muitos de países” [2]
A primazia da forma-dinheiro -enquanto circulação autorreferente sem mediação produtiva- derruba inúmeros mitos liberais como a livre concorrência e a austeridade fiscal. Com a concentração de capital-dinheiro, a tendência é as grandes empresas,
com apoio dos bancos e dos governos liberais, absorverem as pequenas, criando-se monopólios em áreas centrais da economia, encarecendo os preços, determinando-se quem terá acesso a certos bens e serviços. A exportação de capitais para os países de modernidade periférica converte a dívida pública em garantia dos credores internacionais e nacionais, transformando-se os Estados, submetidos à subjugação colonial, não em garantes universais dos direitos, mas em fundos de reserva do capital financeiro internacional e nacional.
Já a propalada austeridade serve, também, apenas para produzir reservas e recursos para garantir o pagamento de dívida pública inauditada pela compressão dos orçamentos públicos mediante a redução drástica dos gastos necessários à efetivação dos direitos econômicos e sociais. Na verdade, o discurso de austeridade revela-se falacioso, pois, mediante corte nos setores essenciais como educação, saúde, seguridade social etc, fomenta-se, ao mesmo tempo, a dívida externa inauditada e a dependência econômica[3]. Enfim, a ‘austeridade’, nesse caso, serve para a perpetuação do endividamento dos Estados.
Não há que cair na mistificação dos aparelhos ideológicos das classes dominantes: estamos em plena vigência de agressivo e encarniçado imperialismo, o qual, conforme lição imperecível de Lenin, se caracteriza não pelo primado do capital-industrial, ligado à produção de mercadorias, mas do capital financeiro.
Então, verifica-se, especialmente pela reificação da política, convertida em mediação básica das condições de perpetuação do domínio do capital financeiro, uma partilha territorial do mundo, consistente na usurpação das riquezas minerais, fontes de água, terras agricultáveis, fontes de energia e etc, presentes em territórios de nações periféricas, suprimindo os povos das condições básicas de vida.[4] É o direito à vida dos povos que está ameaçado. Mas, como as questões centrais das formações sociais são submetidas à deliberação coletiva, a luta política, por isso, coloca-se como central. Não é por acaso que o capital-financeiro busca de todas as formas reificar a política, seja mediante o silenciamento dos intelectuais e líderes populares orgânicos, seja mediante o financiamento a partidos, inclusive os de ‘esquerda’, retirando, para citar Mao Tsé-Tung, o caráter antagônico da contradição política, permitindo o surgimento apenas de ‘políticos’ comprometidos com a reprodução dos meios e condições necessárias à perpetuação da lógica rentista. O capital financeiro, por intermédio da
reificação política, tem suprimido a autodeterminação de inúmeros Estados na modernidade periférica para levar a cabo a empresa nefanda de pilhagem de riquezas naturais. Nessa conjuntura, a América Latina cumpre um papel geopolítico inestimável e a luta por autodeterminação, por isso mesmo, se confunde com a luta pelo direito à vida.
Se o capital financeiro busca reificar a política, cabe aos povos radicalizar as lutas políticas e assumir a vanguarda da luta pelos bens comuns, salvaguardando o futuro da humanidade. Já Hegel, ao defender um direito natural dialético, afirmava que os bens comuns como a água, ar e etc não podem ser submetidos à irracionalidade do domínio privado, mas à racionalidade publico-comunitária.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Vol 1. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 100. A fórmula do capital não é mais M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria), mas D-D (dinheiro-dinheiro). A leitura dos 5 volumes dessa obra-prima do pensamento humano é crucial para entender todos os artifícios do capital. Marx já previra a conversão dos Estados em fundo de reserva de capital mediante a confusão entre dívida pública e bolsa de valores.
[2] LENIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 55.
[3] No caso do Brasil, tivemos partidos pretensamente de esquerdas, consolidando, mediante financiamento de bancos públicos, monopólios no setor de alimentação. O cinismo chega ao ponto máximo de se proclamarem, mediante discurso piedoso típico dos hipócritas, pioneiros da luta pela segurança alimentar. Resta salientar a importância da obra de Josué de Castro, intelectual perseguido pela ditadura explícita (1964-1985), que lutou, de forma pioneira, pela ideia de segurança alimentar.
[4] Sobre a centralidade político-econômica da noção de território, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.
A tua voz principia o fruto
A tua voz principia o fruto
Nela, redivivo, surpreendo incêndios precursores
Na câmara cálida onde pulula o rio que te congraça
Pus minha origem e minha ressureição
Posso efusivamente dedicar-me a tua descoberta
O dia farto não exaure sua tinta
Telúrico
Salta no voo dos meus olhos
Paira no verde
Amplo e febricitante
De tua chegada
São as velas que ampliam o mar: Tu me ensinas
Eis que as velas brotam do amor
Para dar forma o que exala de tua fome de ser o
Mais puro lampejo
A feira de júbilo trouxe para ti os corais de Cora Coralina
No tropel de luas, maiores fragatas trarão a sede de novos périplos.
De: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e Professor da UNEB.
DA RESISTÊNCIA À DEMOCRACIA NAS FORMAÇÕES SOCIAIS COLONIAIS
A democracia é um regime de visibilidade aberto em que qualquer um pode emergir sem a necessidade de ostentar títulos, seja a riqueza, seja uma suposta superioridade. Nas formações marcadas pela branquidão como propriedade, aparece como um grande escândalo, pois significa a emergência de grupos não contados conforme a ascendência e a hierarquia, significa dizer que à branquidão não se confere o privilégio exclusivo de governar e que os não contados integram a comunidade política. Fácil inferir que, na modernidade periférica, o que caracteriza as lutas políticas constitui um confronto aberto contra a resistência- no sentido psicanalítico- à democracia e em prol da emergência dos que tem como título a ausência de título e ostentam a corporalidade viva, que luta por dignidade. As lutas políticas são deflagradas para que se possa constituir a luta política genuína e democrática.
Como a colonialidade do poder incute a superioridade da branquidão, instaura-se uma verdadeira patologia: os que ostentam a branquidão se veem como predestinados exclusivos aos atributos universais da humanidade e se arrogam a condição de privilegiados e únicos capazes de representar o todo social e, portanto, de governar. Engolfados no narcisismo das pequenas diferenças, perdem qualquer alteridade, isto é, qualquer disponibilidade ao outro que não se enquadra no rol de propriedades- sejam biológicas, sejam culturais- com que se identificam, acicatando, como corolário, maquinarias de exclusão simbólica e territorial. É o que Alberto Guerreiro Ramos chamava de patologia do branco.
Nesse contexto, as eleições, como momento importante da democracia, figuram como um verdadeiro fantasma, o fantasma de que, pela aleatoriedade que lhe é constitutiva, o exercício do governo acabe indo para mãos dos que não são os ‘predestinados’, isto é, os grupos não contados pela laminação unívoca da ordenação colonial e que podem, pelo exercício do poder, alterar e transmontar a distribuição colonial dos bens, incluídos os simbólicos.
A política, então, se torna um processo totalmente controlado pelas oligarquias brancas reacionárias, tendo por característica a reatividade à qualquer emergência popular. Não há que se enganar: nas formações sociais coloniais, as oligarquias brancas são violentas e resistem violentamente à emergência democrática, à emergência do qualquer um: o qualquer um sem título que desarma a lógica hierárquica da branquidão como propriedade.
Como conjurar a aleatoriedade das eleições? Pela criação de um sistema cerrado, sutil ou explícito, de exclusão. Jacques Rancière assinala que os Pais-Fundadores não viram nenhuma contradição em erigir o homem proprietário como o único capaz de fazer da esfera pública um lugar infenso a interesses particulares. Ingenuidade? Marx, por sua vez, já na análise semiológico-política das declarações francesas do século XVIII, entreviu a contradição entre o homem, que luta pelo próprio interesse, e o cidadão, que deve figurar como elevado membro da comunidade.
Enquanto o homem luta pelos próprios interesses, faz dos outros meios para atingi-los, o cidadão, enquanto membro da comunidade, deveria agir conforme o interesse público. A contradição, segundo Marx, se resolve pela predominância do interesse privado real sobre o interesse público etéreo e ilusório. Nas formações sociais coloniais, não há esfera pública, o comando já é imediatamente dominado pela lógica privada (1). As eleições são tomadas justamente para conjurar o risco da emergência dos não contados. Conforme salienta Fanon, o poder, nas colônias, é privilégio dos dotados de branquidão e identificados com os valores imperialistas.
A democracia, portanto, constitui o escândalo que embaralha a ordem do discurso. Não é só pela situação discursiva em que aqueles que normalmente são privados da palavra emergem na esfera na pública pelo discurso que a democracia é temida e odiada, mas também pela iminência de que o uso da palavra, ao torcer e suplantar o monopólio do simbólico pelas oligarquias brancas, estimule, esporeie, fomente a constituição de um bloco de poder nacional-popular. É pelo exercício da palavra ou dos gritos de martírio que o povo assoma na seara pública apresentando-se, à luz da lógica colonial, como ameaça à ‘benfajeza’ ordem dos privilégios seculares. A mera emergência de um não contado é vista como ameaça e se verificam manifestações, patentes ou latentes, de racismo. Por isso, conforme salientei no livro As antinomias do direito na modernidade periférica, nas formações coloniais, a única política admitida pelas classes dominantes é a despolitização mediante o silenciamento, pelos mais variados meios, dos que enunciam os sintomas e as contradições das formações sociais.
Mas não há que desesperar da política. A emergência das massas em organizações de disciplina coletiva sempre é possível e, desde que se estabeleçam, pela luta, critérios seguros de verificabilidade da constituição do poder, o jogo pode mudar: as massas silentes podem assomar no vigor da poesia e da criação política de novas formas de ser e de viver.
Espargiu-se, até mesmo pela vulgata marxista, a noção de um Gramsci culturalista e domesticado. Mas Gramsci por ele mesmo não pensava em termos de cultura; como pensador da conjuntura, pensava em termos de poder e entendia a práxis como a busca, diuturna e incansável, pela constituição de um bloco de poder, nacional, popular e revolucionário (2). Lembrando Hegel, o ser humano, ao construir uma casa, usa os elementos da terra para se proteger da própria terra. Então, trata-se de criar um bloco de poder capaz de enfrentar e superar a branquidão como propriedade.
Notas:
1 Assiste razão a Dussel ao enfatizar Fichte como modelo de intelectual para a América Latina. Para Fichte, em momentos graves e difíceis da nação, cabe ao filósofo assumir o risco de, lutando pela instauração de uma verdadeira esfera pública, ser um momento reluzente e complexo de autoconsciência.
2 Para Gramsci, os partidos se tornam pessoas históricas quando se transformam no crisol da unidade entre teoria e prática, entendida como processo histórico. Não há qualquer transformação social sem que se verifique uma efervescência teórico-prático no âmbito dos partidos, sindicatos e movimentos sociais. No caso do Brasil, ainda impera o enunciado popular do período do Império em que havia dois partidos – o liberal e o conservador: ‘’Nada mais conservador do que um liberal no poder, nada mais liberal do que um conservador no poder”. No período ditadorial explícito (1964-1985), tivemos o partido do sim (MDB) e o partido sim, senhor (ARENA). Nada mudou. Mas nada impede o surgimento ou a configuração de partidos antirracistas, anticoloniais e anticapitalistas, constituídos em laboratórios para pensar e articular a totalidade social. Conforme dizia Guerreiro Ramos, os fenômenos sociais são totais, exigindo a superação da perspectiva fragmentária tão ao sabor do império.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB
Pronunciamento do ministro Luís Roberto Barroso.
I. Introdução
1. A propósito dos eventos e pronunciamentos do último dia 7 de setembro, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Fux, já se manifestou com relação aos ataques àquele Tribunal, seus Ministros e às instituições, com o vigor que se impunha.
2. A mim, como Presidente do Tribunal Superior Eleitoral cabe apenas rebater o que se disse de inverídico em relação à Justiça Eleitoral. Faço isso em nome dos milhares de juízes e servidores que servem ao Brasil com patriotismo – não o da retórica de palanque, mas o do trabalho duro e dedicado –, e que não devem ficar indefesos diante da linguagem abusiva e da mentira.
3. Já começa a ficar cansativo, no Brasil, ter que repetidamente desmentir falsidades, para que não sejamos dominados pela pós-verdade, pelos fatos alternativos, para que a repetição da mentira não crie a impressão de que ela se tornou verdade. É muito triste o ponto a que chegamos.
Þ Antes de responder objetivamente a tudo o que precisa ser respondido, faço uma breve reflexão sobre o mundo em que estamos vivendo e as provações pelas quais têm passado as democracias contemporâneas. É preciso entender o que está acontecendo para resistir adequadamente.
II. A Recessão Democrática no Mundo
1. A democracia vive um momento delicado em diferentes partes do mundo, em um processo que tem sido batizado como recessão democrática, retrocesso democrático, constitucionalismo abusivo, democracias iliberais ou legalismo autocrático. Os exemplos foram se acumulando ao longo dos anos: Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Geórgia, Ucrânia, Filipinas, Venezuela, Nicarágua e El Salvador, entre outros. É nesse clube que muitos gostariam que nós entrássemos.
2. Em todos esses casos, a erosão da democracia não se deu por golpe de Estado, sob as armas de algum general e seus comandados. Nos exemplos acima, o processo de subversão democrática se deu pelas mãos de presidentes e primeiros-ministros devidamente eleitos pelo voto popular. Em seguida, paulatinamente, vêm as medidas que desconstroem os pilares da democracia e pavimentam o caminho para o autoritarismo.
III. Três fenômenos distintos
1. Há três fenômenos distintos em curso em países diversos: a) o populismo; b) o extremismo e c) o autoritarismo. Eles não se confundem entre si, mas quando se manifestam simultaneamente – o que tem sido frequente – trazem graves problemas para a democracia.
2. O populismo tem lugar quando líderes carismáticos manipulam as necessidades e os medos da população, apresentando-se como anti-establishment, diferentes “de tudo o que está aí” e prometendo soluções simples e erradas, que frequentemente cobram um preço alto no futuro.
3. Quando o fracasso inevitável bate à porta – porque esse é o destino do populismo –, é preciso encontrar culpados, bodes expiatórios. O populismo vive de arrumar inimigos para justificar o seu fiasco. Pode ser o comunismo, a imprensa ou os tribunais.https://af39ba6382ea8a93018518045fe89f3a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
4. As estratégias mais comuns são conhecidas:
a) uso das mídias sociais, estabelecendo uma comunicação direta com as massas, para procurar inflamá-las;
b) a desvalorização ou cooptação das instituições de mediação da vontade popular, como o Legislativo, a imprensa e as entidades da sociedade civil; e
c) ataque às supremas cortes, que têm o papel de, em nome da Constituição, limitar e controlar o poder.
5. O extremismo se manifesta pela intolerância, agressividade e ataque a instituições e pessoas. É a não aceitação do outro, o esforço para desqualificar ou destruir os que pensam diferente. Cultiva-se o conflito do nós contra eles. O extremismo tem se valido de campanhas de ódio, desinformação, meias verdades e teorias conspiratórias, que visam enfraquecer os fundamentos da democracia representativa. Manifestação emblemática dessa disfunção foi a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, após a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais. Por aqui, não faltou quem pregasse invadir o Congresso e o Supremo.
6. O autoritarismo, por sua vez, é um fenômeno que sempre assombrou diferentes continentes – América Latina, Ásia, África e mesmo partes da Europa –, sendo permanente tentação daqueles que chegam ao poder.
7. Em democracias recentes, parte das novas gerações já não tem na memória o registro dos desmandos das ditaduras, com seu cortejo de intolerância, violência e perseguições. Por isso mesmo, são presas mais fáceis dos discursos autoritários.
8. Uma das estratégias do autoritarismo, dos que anseiam a ditadura, é criar um ambiente de mentiras, no qual as pessoas já não divergem apenas quanto às suas opiniões, mas também quanto aos próprios fatos. Pós-verdade e fatos alternativos são palavras que ingressaram no vocabulário contemporâneo e identificam essa distopia em que muitos países estão vivendo.
9. Uma das manifestações do autoritarismo pelo mundo afora é a tentativa de desacreditar o processo eleitoral para, em caso de derrota, poder alegar fraude e deslegitimar o vencedor.https://af39ba6382ea8a93018518045fe89f3a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
10. Visto o cenário mundial, falo brevemente sobre o Brasil e os ataques sofridos pela Justiça Eleitoral.
IV. Referências ao TSE e ao processo eleitoral
1. No tom, com o vocabulário e a sintaxe que é capaz de manejar, o Presidente da República fez os seguintes comentários que dizem respeito à Justiça Eleitoral e que passo a responder.
I. “A alma da democracia é o voto”.
1. De fato, o voto é elemento essencial da democracia representativa.
2. Outro elemento igualmente fundamental é o debate público permanente e de qualidade, que permite que todos os cidadãos recebam informações corretas, formem sua opinião e apresentem seus argumentos.
3. Quando esse debate é contaminado por discursos de ódio, campanhas de desinformação e teorias conspiratórias infundadas, a democracia é aviltada.
Þ O slogan para o momento brasileiro, ao contrário do propalado, parece ser: “Conhecerás a mentira e a mentira te aprisionará”.
II. “Não podemos admitir um sistema eleitoral que não fornece qualquer segurança”
1. As urnas eletrônicas brasileiras são totalmente seguras. Em primeiro lugar, elas não entram em rede e não são passíveis de acesso remoto. Podem tentar invadir os computadores do TSE (e obter alguns dados cadastrais irrelevantes), podem fazer ataques de negação de serviço aos nossos sistemas, nada disso é capaz de comprometer o resultado da eleição. A própria urna é que imprime os resultados e os divulga.
2. Os programas que processam as eleições têm o seu código fonte aberto à inspeção de todos os partidos, da Polícia Federal, do Ministério Público e da OAB um ano antes das eleições. Estará à disposição dessas entidades a partir de 4 de outubro próximo. Inúmeros observadores internacionais examinaram o sistema com seus técnicos e atestaram a sua integridade.
3. Ainda hoje, daqui a pouco, anunciarei os integrantes da Comissão de Transparência das Eleições, que vão acompanhar cada passo do processo eleitoral. Nunca se documentou qualquer episódio de fraude.https://af39ba6382ea8a93018518045fe89f3a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Þ O sistema é certamente inseguro para quem acha que o único resultado possível é a própria vitória. Como já disse antes, para maus perdedores não há remédio na farmacologia jurídica.
III. “Nós queremos eleições limpas, democráticas, com voto auditável e contagem pública de votos”
1. As eleições brasileiras são totalmente limpas, democráticas e auditáveis. Eu não vou repetir uma vez mais que nunca se documentou fraude, que por esse sistema foram eleitos FHC, Lula, Dilma e Bolsonaro e que há 10 (dez) camadas de auditoria no sistema.
2. Agora: contagem pública manual de votos é como abandonar o computador e regredir, não à máquina de escrever, mas à caneta tinteiro. Seria um retorno ao tempo da fraude e da manipulação. Se tentam invadir o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, imagine-se o que não fariam com as seções eleitorais!
3. As eleições brasileiras são limpas, democráticas e auditáveis. Nessa vida, porém, o que existe está nos olhos do que vê.
IV. “Não podemos ter eleições onde (sic) pairem dúvidas sobre os eleitores”
1. Depois de quase três anos de campanha diuturna e insidiosa contra as urnas eletrônicas, por parte de ninguém menos do que o Presidente da República, uma minoria de eleitores passou a ter dúvida sobre a segurança do processo eleitoral. Dúvida criada artificialmente por uma máquina governamental de propaganda. Assim que pararem de circular as mentiras, as dúvidas se dissiparão.
V. “Não posso participar de uma farsa como essa patrocinada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral”
1. O Presidente da República repetiu, incessantemente, que teria havido fraude na eleição na qual se elegeu. Disse eu, então, à época, que ele tinha o dever moral de apresentar as provas. Não apresentou.
2. Continuou a repetir a acusação falsa e prometeu apresentar as provas. Após uma live que deverá figurar em qualquer futura antologia de eventos bizarros, foi intimado pelo TSE para cumprir o dever jurídico de apresentar as provas, se as tivesse. Não apresentou.
3. É tudo retórica vazia. Hoje em dia, salvo os fanáticos (que são cegos pelo radicalismo) e os mercenários (que são cegos pela monetização da mentira), todas as pessoas de bem sabem que não houve fraude e quem é o farsante nessa história.
VI. “Não é uma pessoa no Tribunal Superior Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável”.
1. Não sou eu que digo isso. Todos os ex-Presidentes do TSE no pós-88 – 15 Ministros e ex-Ministros do STF – atestam isso. Mas, na verdade, quem decidiu que não haveria voto impresso foi o Congresso Nacional, não foi o TSE.
2. A esse propósito, eu compareci à Câmara dos Deputados após três convites: da autora da proposta, do Presidente da Comissão Especial e um convite pessoal do Presidente daquela Casa. Não fiz ativismo legislativo. Fui insistentemente convidado.
3. Lá expus as razões do TSE. Não tenho verbas, não tenho tropas, não troco votos. Só trabalho com a verdade e a boa fé. São forças poderosas. São as grandes forças do universo. A verdade realmente liberta. Mas só àqueles que a praticam.
4. Foi o Congresso Nacional – não o TSE – que recusou o voto impresso. E fez muito bem. O Presidente da Câmara afirmou que após a votação da Proposta, o assunto estaria encerrado. Cumpriu a palavra. O Presidente do Senado afirmou que após a votação da Proposta, o assunto estaria encerrado. Cumpriu a palavra. O Presidente da República, como ontem lembrou o Presidente da Câmara, afirmou que após a votação da proposta o assunto estaria encerrado. Não cumpriu a palavra.
5. Seja como for, é uma covardia atacar a Justiça Eleitoral por falta de coragem de atacar o Congresso Nacional, que é quem decide a matéria.
VII. Conclusão
1. Insulto não é argumento. Ofensa não é coragem. A incivilidade é uma derrota do espírito. A falta de compostura nos envergonha perante o mundo. A marca Brasil sofre, nesse momento, uma desvalorização global. Somos vítimas de chacota e de desprezo mundial.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
2. Um desprestígio maior do que a inflação, do que o desemprego, do que a queda de renda, do que a alta do dólar, do que a queda da bolsa, do que o desmatamento da Amazônia, do que o número de mortos pela pandemia, do que a fuga de cérebros e de investimentos. Mas, pior que tudo, nos diminui perante nós mesmos. Não podemos permitir a destruição das instituições para encobrir o fracasso econômico, social e moral que estamos vivendo.
3. A democracia tem lugar para conservadores, liberais e progressistas. O que nos une na diferença é o respeito à Constituição, aos valores comuns que compartilhamos e que estão nela inscritos. A democracia só não tem lugar para quem pretenda destruí-la.
Þ Com a bênção de Deus – o Deus do bem, do amor e do respeito ao próximo – e a proteção das instituições, um Presidente eleito democraticamente pelo voto popular tomará posse no dia 1º de janeiro de 2023.