Arquivos mensais: agosto 2021
O RETORNO DA POLÍTICA COMO O RETORNO DO RECALCADO
A política só acontece porque na articulação dos conjuntos sociais sempre há uma fresta entre a topologia social cerrada e a emergência de novos sujeitos capazes de questionar a ordenação colonial. É sempre num enclave, numa junção disjunta, que a política retorna. Em que enclave? No entremeio entre os que definem o campo social a partir de ascendências e hierarquias e os que, embora não contados, insurgem-se e se afirmam como sujeitos políticos e em cuja afirmação já se manifesta a clivagem social, isto é, a divisão social.
Os verdadeiros sujeitos políticos se inserem no momento em que a clivagem social se manifesta. Ou melhor, nascem no momento em que, ao afirmarem a sua existência mesma, demonstram o irrepresentável que obseda sempre o que conta numa determinada situação.
Um modo de produção para se reproduzir precisa coisificar os sujeitos sociais e o próprio caráter processual da realidade. Althusser diz que a ideologia interpela o indivíduo enquanto sujeito de tal forma que o indivíduo, imaginando-se acima de qualquer pertencimento social, vê-se como determinante último do real. Uma ilusão de autonomia que constitui a estratégia de dominação, pois, em sendo interpelado como sujeito, o indivíduo se enxerga acima da história quando não passa de um grande murmúrio no silêncio das formas sociais injustas.
Na ideologia, as imagens das formas sociais também são coisificadas. O produzir-se das formas sociais que constitui um projeto jogado, isto é, como escolha civilizatória dentre outras, entrevê-se como destino fatal. Ver o produto social sem o processo de produção é o cerne da fetichização. A política se fetichiza quando o sentido deliberativo da política é negado das formas sutis desde a repressão mais aguda à reprodução de mandatos políticos sem força e autonomia para tocar nas contradições. Só se admitem novidades reacionárias.
Dessa forma, uma formação social só se reproduz pelo trabalho diuturno de negação de seus problemas. Quando há um mínimo de tecido social, a dominação se exerce mediante a criação de noções de desorientação ou pela desnaturação de conceitos com potencial elucidador. Toda a cantilena sobre semipresidencialismo, presidencialismo de coalização, reformas superficiais eleitorais são táticas diversionistas.
O método dialético tem justamente essa tarefa infinita de criticar as noções de desorientação e, no elucidá-las, transpor a situação alienada com a indicação de um horizonte de possíveis factíveis. Pensar é transpor, diz Ernst Bloch.
Não há nada atrás das cortinas, todos os temas veem a tona. A questão é que as classes dominantes, cujo instinto de classe é apurado, desenvolvem estereótipos com o objetivo de, sob o pretexto de tangenciar os problemas, operar uma verdadeira deserção do real. Por isso, a assertiva de Mao Tsé-Tung de que ‘’não se deve esquecer nunca as lutas de classes’’ deve ser entendida no sentido de que o trabalho teórico da critica, de que a prática teórica não deve cessar nunca e que esse exercício torna-se infinito na medida em que se propalam, pelos mais variados meios, temas e problemas e respostas de desorientação. Onde há desorientação, que haja método: trabalho incansável de elucidar a sociedade.
A subsunção material, definida por Marx, não consiste somente na reprodução do trabalho como trabalho assalariado, do trabalho como mercadoria, mas pela reprodução da subjetividade que introjete os valores sobressalentes das formações sociais capitalistas. Sem a fabricação do indivíduo insulado, mergulhado na luta pelos próprios interesses, sem compreensão do horizonte que integra, sem sentido comunitário, o modo de produção capitalista não sobrevive.
Não há fetichização da política sem a supressão da potência política dos sujeitos. Somente por um longo processo de desidentificação com os valores predominantes que o indivíduo se emancipa. Dessubjetiva-se da lógica da dominação, subjetiva-se não mais como dobra do poder, mas como potência comunitária que, visualizando a totalidade social, apreende no ler o real o rastro da emancipação.
A melhor fórmula para definir a existência da política é a fórmula lacaniana: o recalque é o retorno do recalcado. O fato de se estabelecer representações em que as contradições são dissolvidas imaginariamente, construindo uma ‘realidade’ cuja versão é precária, é apenas um índice da existência da política. O fator determinante é a constrição de todas as formas de projetar a possibilidade de que, pelo uso público da razão, as formações sociais cheguem à compreensão de que não são obra do acaso ou do fatalismo, mas são projetos jogados, isto é, são frutos de escolhas que se materializam em instituições. Noutras palavras, o poder constituinte nunca cessa, nunca para, está sempre em movimento em todo pensador genuíno, em todo movimento social consequente, em todo partido que articula a totalidade.
É quando emerge a palavra sem murmúrio ou sibila o grito da dor contida, dizia Fanon, nos ossos dos colonizados. Surge então potências políticas que, sem temer o suplemento do poder punitivo, afirmam o comum. O recalque é o retorno do recalcado. Rebentam pensamentos metamórficos que, sob a pressão, recolhem as chispas e as lágrimas do que a palavra comunismo promete e anuncia.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
DA APROPRIAÇÃO PRIVADA DA LINGUAGEM À ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO CAPITAL
“O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes’’ Mikhail Bakhtin (Volochínov)
A hermenêutica filosófica de índole gadameriana reduz o ser à linguagem. O ser a ser compreendido é linguagem- eis a divisa mais forte dessa corrente. Aposta-se que, na linguagem, adensa-se toda a historicidade da tradição ancorada no acordo comunitário. A redução de toda ontologia- teoria do ser enquanto ser- à linguagem é, deveras, idealista, mas ao mesmo traz em relevo o papel que a linguagem cumpre na dinâmica da sociedade. O semiólogo russo Mikhail Bakhtin traz aportes mais dialéticos e demanda o estudo dos signos na materialidade concreta e diante e dentro da correlação de forças. Como afirma, se a linguagem é indiferente às classes, por sua vez, as classes não são indiferentes à linguagem.
No plano jurídico, a forma com que o legislador plasma as leis e o papel crucial no uso da linguagem cumpre papel decisivo e merece atenção de toda comunidade. Pode-se afirmar que, na técnica legislativa de construção dos documentos normativos, estabelece-se a verdadeira refrega pela produção dos sentidos e quem produz os sentidos detém todos os elementos para forjar a política de uma nação. A própria colonização inicia-se pelo poder de designar, de dar nomes, por isso, é um risco fatal a uma sociedade o monopólio da produção dos sentidos pelos agentes coloniais do império. A questão é mais premente quando se percebe que toda legislação a ser produzida deve instaurar sentidos equivalentes ao texto constitucional. Dessa forma, a legislação não pode ser vista como ancilar à constituição, mas como concretização dos sentidos analógicos da constituição. Nos ensina a experiência que uma constituição, por mais avançada que seja, não se realiza se não houver uma legislação ulterior que se lhe desdobre e se lhe dê efetividade. Não se deve descurar das produções das leis como continuação e como efetivação do projeto constitucional.
Assim como o interprete pode atribuir sentidos alheios à moldura analógica da norma, embutindo sentidos estranhos ao sentido literal, apropriando-se da lei, na legislação também é possível pela redação deliberadamente anticonstitucional entabular outra modalidade de apropriação privada da linguagem. Noutras palavras, é possível promover a apropriação privada da linguagem pelo ato de legislar, discrepando-se, distorcendo-se, anulando-se os sentidos constitucionais.
Ao regulamentar a questão ambiental, a constituição traçou critérios qualitativos que condensam de forma plena a concepção da sustentabilidade, que deve ser entendida como manutenção salutar do metabolismo ser humano e natureza para as gerações atuais e futuras.
Estabelece o art. 225 da CRFB o direito ao meio ambiente equilibrado, o qual deve ser estruturalmente vinculado às balizas objetivas que caracterizam a função social da propriedade. Articula-se a proteção do meio ambiente ao cumprimento da função social da propriedade. As notas definidas no art. 186 da CRFB para a efetivação da função social da propriedade são:
- Aproveitamento racional e adequado;
- Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
- Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
- Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores;
Tais balizas necessitavam de desdobramentos e, no fazer os detalhamentos, esses elementos foram, por meio da legislação infraconstitucional, desvanecidos, esfumados e desnaturados de tal forma que se pode afirmar que o texto foi submetido a uma espécie de revogação pela lei inferior. É preciso cuidar da produção dos sentidos. Só para criar a imagética adequada: lançar um número de animais em certa propriedade, por si só, configuraria cumprimento social da propriedade de forma a favorecer o latifúndio e o avoengo coronelismo.
A lei 8.629/93 estabelece como aproveitamento regular:
Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguinte sistemática:
I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
II – para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.
Veja-se que, conforme define o incisivo II do § º 2 do art. 6 da indigitada lei, a quantidade do rebanho define o aproveitamento regular, frustrando a expectativa constitucional. Trata-se de um caso de apropriação privada da linguagem por intermédio da legislação.
O projeto de lei 2633 segue o mesmo curso, pois, apropriando-se da linguagem, esporeia a acumulação primitiva do capital, suprimindo a base fundiária dos povos originários e dos camponeses. É condição básica de reprodução do modo de produção capitalista a contínua acumulação primitiva do capital- dizia Marx, esse funcionário da humanidade. O capitalismo não abdicará, sem resistência, da retirada da base fundiária dos povos originários.
Não há apropriação das terras dos povos originários sem a apropriação privada da linguagem. Consoante afirma Bakhtin:
Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presenta em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação 1
É preciso estar atento para evitar que, sob o pretexto de regulamentar a constituição, opere-se rarefações ideológicos verbais, aniquilando-se os sentidos comunitários que a constituição homizia e, por sua existência mesma, instaura nos momentos de armistícios sociais.
- BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010, p.38
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
DA MONTANHA QUE TEMOS QUE VENCER COM URGÊNCIA
Comunistas do mundo, uni-vos
A José Ramos Tinhorão, em nome de quem envio um abraço fraternal a dois poetas decoloniais.
“Toda questão de ordem ideológica, toda controvérsia no seio do povo não pode ser resolvida senão por métodos democráticos, métodos de discussão, de crítica, de persuasão e de educação; não se pode resolver nada por métodos repressivos e coercitivos’’ 1
A assertiva de Umberto Eco de que um texto, quando se desprende das condições de sua emissão, flutua no vácuo é errônea. Primeiro, porque um texto sempre traz junto a si, ainda que de forma tênue, rastros das condições em que foi gestado. Segundo, porque todo texto, ao ser emitido, entra num horizonte indeclinável que determina e condiciona a sua recepção. Abundam exemplos na literatura. A obra-prima Grande Sertão: Veredas- que criou um novo idioma dentro do próprio idioma- foi recepcionada como uma mera novela picaresca de bandos de desordeiros em conflito. Avalovara, de Osman Lins, é tão inovadora no que concerne a forma e, consoante a cibernética, a forma já é mensagem, que até hoje a obra é, absurdamente, ignorada. É nessa problemática que surge a teoria literária da recepção.
A estética da recepção, como corrente literária, busca compreender o modo como um texto produz seus efeitos não num sentido mecânico como a palavra pode sugerir, mas como o texto, na medida mesma em que estrutura de forma a priori sua própria leitura, cria mundos. O fato de a estética da recepção ter enfatizado a importância da subjetividade na recepção do texto não sucumbe ao psicologismo nem confere importância exagerada à subjetividade que, supostamente, seria o alfa e o ômega da interpretação.
Os efeitos do texto são prefigurados pelo próprio texto ainda que a participação da subjetividade que o recepciona seja decisiva nesse papel. Não bastasse isso, nenhuma leitura ocorre fora da mediação de um horizonte de expectativa no qual os textos vão se deparar e ou brilhar na sua grandeza ou, muitas vezes, naufragar tristemente. Por exemplo, a obra de Lima Barreto que desnuda com toda força as contradições pungentes do Brasil revela como um olhar-se no espelho e o reflexo não é nada formoso. O horizonte de expectativa, no contexto brasileiro, por conseguinte, mostra-se totalmente infenso à obra desse gênio que já demonstrara em contos e romances que o racismo deixaria de ser biológico para tornar-se cultural, antecipando muitos filósofos e questões hoje prementes. Quantos autores geniais criaram obras que, de tão ricas, foram incompreendidas? Outras quantas de tão desafiadoras, de forma silente, foram censuradas?
Gadamer define horizonte como o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. O conceito não é satisfatório porque incide num espontaneísmo que ignora o influxo das lutas políticas e das lutas pelas palavras no embater social e que, no fundo, as grandes lutas de classe é o desacordo acerca da percepção da realidade. O filósofo japonês Kojin Karatani quando criou o conceito de Paralaxe quer mostrar que os conflitos de interpretação já demonstram que o real é um topos em que o futuro das formações sociais se desenha e se desenrola (2). O próprio conflito de interpretação revela a não coincidência do real consigo mesmo e a abertura mesma dos possíveis.
Podemos definir horizonte como regime de visibilidade e de invisibilidade instaurado pelas relações de forças que integram qualquer formação marcada pelas lutas de classes. O horizonte de expectativa define, de forma prévia, o que é visível e o que é invisível.
Muitas vezes o regime de invisibilidade é de forma sutil; outras, de forma violenta. Tudo como o escopo de impedir a elucidação das formas sociais e das mazelas que lhe são evidentes. Nessa cumeada, qual o horizonte de expectativa da constituição brasileira vigente? No que aqui importa, releva que a Constituição de 1988 é referta em direitos sociais, impôs freios ao sistema do capital financeiro com normas de eficácia plena- que fora totalmente desregulamentado- e criou um sistema protetivo do trabalho e seguridade social ampla envolvendo previdência social, saúde e assistência momentânea até o debelar, por políticas públicas, da pobreza e das condições miseráveis em que vive, infeliz e tragicamente, parcela relevante de nacionais como nós num país de riquezas inestimáveis. Como uma constituição dessa jaez é recepcionada num país em que o conceito de nação é restrito às oligarquias brancas com a exclusão, mediante permanente estado de exceção, dos povos que nos formam?
Ocorre que tamanha projeção generosa se depara com uma montanha íngreme- a colonialidade do poder- cuja superação requer o esforço descomunal de várias gerações. A colonialidade estabelece várias divisões desde a divisão entre o trabalho manual – que é, erroneamente, objeto de desprezo e o trabalho intelectual: ocorre a racialização das atividades manuais; a divisão sexual na exploração do trabalho feminino, no livro Os Quilombos como novos da terra apresento a hipótese de que a classe operária é tendencialmente feminina como forma sutil de efetivar a precarização dos salários; a divisão etária, suprimindo das crianças o direito de desenvolver sua potência para serem exploradas como mão-de-obra escrava;a violência contra os gêneros diferentes; a foraclusão da questão de gênero e o desatar da violência que decorre disso.
No plano político, o sistema é tão deficiente que impede, salvo raras exceções, a emergência de lideranças populares; o próprio termo populismo é usado de forma distorcida para lançar pecha em quem se arvora com coragem em defensor dos povos; os políticos e os intelectuais que entendem e colocam às claras e com veemência a questão colonial são objeto de campanhas intensas de estigmatização e tidos como caudilhos machistas. O caso emblemático é do grandioso político Leonel Brizola, trabalhista autêntico e crítico ferrenho do modelo econômico colonial que nos afunda na tragédia social. No plano ideológico, a branquidão se vê como o estuário exclusivo das qualidades universais da humanidade e, os outros, são bárbaros cujo direito à vida é desprezado e, quando demonstram algum talento exponencial, são rechaçados brutalmente(3). No Brasil, a colonialidade constitui um horizonte de expectativa contrario às projeções constitucionais.
A saída não é a iconoclastia dos que, como Augusto dos Anjos, ao criticar o fetichismo, destruiu os próprios sonhos (4). A questão é estabelecer o método de elucidação, organizar a sociedade e, criando a disciplina coletiva, colher a constituição pela palavra, efetivando-a para salvaguardar a humanidade com um futuro compartilhado.
A colonialidade do poder é a grande montanha que temos de vencer e é urgente.
- TSÉ-TUNG, Mao. Le Petit Livre Rouge. Paris: Éditions seuil, p. 35. Uso o negrito e indico com precisão a fonte para que saibam um pouco quem foi um dos mais libertários seres humanos da humanidade.
- Quem compreendeu a filosofia de Mao Tsé-Tung sabe que, nas fímbrias de um discurso, às vezes perfunctório, é possível captar o real. Marx dizia que apreendeu economia política estudando a linguagem dos ‘liberais’.
Quando o presidente Fernando Henrique disse que a constituição é um empecilho à governança-palavra que não diz muita coisa- revela que a política que desenvolvera foi no sentido de frustrar as esperanças da constituição. Não é um discurso liberal. O liberalismo é um mito ocidental porque não existe nenhuma burguesia que não seja estatal. Basta ver as subvenções. Toda burguesia é estatal.
Além disso, Mao Tsé-Tung dizia que o liberalismo é apenas um nome vazio para dividir a nação e destruir a disciplina coletiva. E, quando uma nação está desorientada, a tarefa mais urgente é criar o método de elucidação. Criemo-lo, juntos e unidos.
- KARATANI, Kojin. Transcritique: On Kant and Marx. London: The MIT Press, 2003.
- O exemplo de Carolina de Jesus, Lima Barreto, Alberto Guerreiro. Itamar Assumpção, Maria Firmina, Luiza Mahin, Mariele Franco são emblemáticos.
- Excerto do poema Vandalismo de Augusto dos Anjos:
“E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!”
É preciso manter os sonhos. A vida é, também, doce, amigo. E no dia que em encararmos Lima Barreto será um momento de esperança.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
POR QUE O SEMIPRESIDENCIALISMO É ANTICONSTITUCIONAL NO BRASIL?
A Dom Pedro Casaldáliga
“Se alguém pudesse ser um pele-vermelha, sempre alerta, cavalgando sobre um cavalo veloz, através do vento, constantemente sacudido sobre a terra estremecida, até atirar as esporas, porque não fazem falta esporas, até atirar as rédeas, porque não fazem falta rédeas, e apenas visse diante de si que o campo era uma pradaria rasa, teriam desaparecido as crinas e a cabeça do cavalo.” Franz Kafka
Todo debate de índole constitucional deve partir, por razões de segurança jurídica e fidelidade ao projeto constitucional, do texto e de suas interações estruturais. Conforme salientei, alhures, a interpretação constitucional comporta três níveis: o textual, o estrutural e o histórico. O texto, na medida em que é um vir-a-ser-mundo, traz em bojo a estrutura de sua própria leitura.(1)
Em razões das várias crises político-econômicos por que passa a nação, vez ou outra, uns publicistas- que se arrogam a condição de mentores do país- propõem, contra o texto e contra o intertexto constitucional, a inserção, no nosso sistema político, do semipresidencialismo.
A ideia, para citar Nietzsche, confunde causa e efeito. Todos os problemas políticos brasileiros emanam da autorreferência do poder político que, na incapacidade de deliberar e resolver os problemas coletivos, reduz a dinâmica parlamentar à repartição mesquinha de benesses e prestígio.
A política – que é um ofício nobre- vira simplesmente uma prática de repartição colonial de interesses comezinhos e anti-republicanos.
Para ocultar tais mazelas, forjam-se termos os mais frágeis do ponto de vista teórico tais como presidencialismo de coalização, verdadeira noção de desorientação e, por corolário, ofusca o problema em vez de esclarecer. Na verdade, são termos sem qualquer conteúdo científico e que não merecem nem ser mencionado na medida em que não passam de ideologia da mais simplista possível. (2)
Duas notas técnicas sobre o tal semipresidencialismo:
- Afronta o fundamento maior da República- a Soberania Popular;
- O Presidencialismo é clausula pétrea e, portanto, integra o núcleo imodificável da constitucional;
Reza o parágrafo único do art. 1 da CRFB:
“Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
É de hialina clareza que o mandato político, qualquer que seja, emana da vontade popular e não de interposta instituição ou pessoa. Fica evidente a esfuziante anticonstitucionalidade do semipresidencialismo (3). É importante remarcar que a expressão ‘’diretamente’’ se refere às formas de manifestação direta da soberania como plebiscito, referendo e projeto de iniciativa popular, não agasalhando qualquer interpretação que indique a possibilidade de intermediação entre o voto do povo e a produção dos mandatos políticos. A relação entre o povo e os mandatários se dá mediante o voto e não por vias transversas (nível textual).
No nível estrutural, verifica-se que, no âmbito do que Pontes de Miranda denominou princípios sensíveis, tem-se o sistema representativo e a autonomia do Poder Executivo. É de compreensão basal que o semipresidencialismo não se compadece nem se coaduna com o sistema representativo (nível estrutural).
Reza o art. 34 da CRFB:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
Os princípios sensíveis, conforme o gênio de Pontes de Miranda, são aqueles que, sendo inerentes à identidade da constituição, não podem ser retirados sob pena de se deformar o projeto constituinte originário. O sistema representativo e a autonomia do Executivo informam de forma indelével à ordem constitucional hodierna, podendo ser alterados somente por outra constituinte.
No núcleo imodificável da constituição, inserto no § 4º do art. 60 da CRFB, consta a presença indisfarçável do sistema representativo e do voto inalienável, o que, numa leitura intra-estrutural do dispositivo, deixa fora de dúvida que o sistema de governo adotado pelo constituinte é o Presidencialismo. É curial que nenhuma proposta com tendência- é de tendência que se trata- a abolir o presidencialismo não pode sequer ser objeto de deliberação. (4)
Do ponto de vista histórico, a única vez que inseriram o semipresidencialismo foi para manietar a vontade popular nos idos de 1961 para suprimir o poder do presidente popular e trabalhista João Goulart, evitando-se o acicate das reformas de base que ensejariam a mudança sócio-econômica do país. Tanto que deflagraram o golpe militar (nível histórico). Enfim, o Poder Executivo integra a unidade da constituição.
De que o Brasil precisa é de real democracia, retirando da oligarquia o monopólio da política e da vida. E que os publicistas cumpram o seu papel sem apropriação privada da linguagem.
Na cena final do filme- Deus e o Diabo na Terra do Sol- do genial baiano Glauber Rocha, Corisco alvejado, rodopia no ar, tomba e lança o grito ‘’mais fortes são os poderes do povo’’; o grito alteia-se, reverbera, retine, reluz e se eterniza da mesma forma que a arte ultrapassa a individualidade que a concebe.
Fortes também são os poderes do conhecimento e o povo partilhará do sabor de saber-se livre.
- NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018;
- Ver nosso: https://lavrapalavra.com/2021/04/12/da-metodologia-juridica-na-producao-e-na-interpretacao-do-direito-estudo-de-um-caso/
- A diferença entre inconstitucionalidade e anticonstitucionalidade é essencial em países de modernidade periférica. Zagrebelsky, em El Derecho Dúctil, traz essa importante distinção e que deve ser desdobrada com mais vagar. A anticonstitucionalidade demonstra um pendor deliberado em frustrar a constituição.
- Conforme Jurisprudência inaugurada pelo Eminente Jurista e Ministro do STF Marco Aurélio, no caso de tramitação de projeto que fere cláusula pétrea cabe mandado de segurança preventivo a ser impetrado por parlamentar com escopo de garantir o devido processo legislativo e sustar a tramitação (MS 22183/DF, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio).
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.